Todas as Estradas Têm Gosto de Sal | 2024

Todas as Estradas Têm Gosto de Sal | 2024
Uma poesia silenciosa.

Dificilmente nossa memória manterá intactos diálogos inteiros, eventos completos que nos aconteceram em tempos distantes. É muito mais provável que tenhamos pequenos lapsos de imagens, cheiros, sons, coisas que poderiam parecer insignificantes, mas que, de alguma forma, fizeram marcas duradouras. As lembranças não seguem uma cronologia ou uma lógica, pois são momentos intensivos que somados fazem parte do que somos no presente. É essa a sensação de Todas as Estradas Têm Gosto de Sal, primeiro longa-metragem de Raven Jackson, um retrato fragmentado da vida de uma mulher negra na zona rural do Mississippi.

Ao longo de 40 anos acompanhamos Mackenzie, da infância à vida adulta, seus dilemas, suas frustrações, relações afetivas e, principalmente, a falta dos pais e seus efeitos nela e na irmã mais nova, Josie. Quando jovem presencia os horrores do racismo nos Estados Unidos. Ainda sem entender os acontecimentos plenamente, vê o medo nos olhos de seus pais que precisam ensinar as filhas a se virarem, já prevendo que logo não estarão mais presentes. Há um semblante de preocupação no ar, uma tentativa de passar adiante uma força de resistência que se faz necessária diante do cenário preconceituoso dos anos 70. Ela aprende a pescar, cortar o peixe, vê a mãe se embelezar e dançar com o pai, sente cada vez mais a necessidade do laço de irmandade com Josie.

Como a diretora opta por uma abordagem intimista e não linear, todos esses momentos são lançados na tela como flashs acompanhados de raros momentos de diálogos que não estão ali como explicações, mas como frases soltas que se refletem como lembrança da personagem. A câmera quase sempre está desconectada da ação, dando-lhe pouca visibilidade, com contraplanos praticamente inexistentes, reservando-se a enquadramentos fechadíssimos de mãos, olhos, cabelos, e do contato de Mackenzie com elementos da natureza.

Essa forma cria uma bela montagem poética da vida da personagem, algo que nos remete muito ao Cinema tardio praticado por Terrence Malick, mas com uma diferença muito óbvia. Enquanto Malick reforça o interior dos personagens pela narração de seus pensamentos, Jackson retira essa interioridade para dar privilégio às imagens e ao silêncio que as acompanha.

A primeira cena de Todas as Estradas Têm Gosto de Sal, por exemplo, é construída a partir da relação do pai com a filha enquanto a ensina a pescar. É ele quem fala, enquanto a filha observa tudo e segue as instruções do pai de forma acanhada. O olhar da atriz que interpreta Mackenzie jovem (Kaylee Nicole Johnson) é inerte, sem excitação. Ao pegar o peixe, Jackson filma alguns minutos da interação da menina com a água e o barro, depois amplia esse quadro para mostrar a mistura dos dois elementos, apenas criando uma imagem bonita durante alguns segundos, mas sem energia.

A dinâmica da memória fragmentada é eficiente na criação dessa poética pretendida pela cineasta, mas carece de sentido narrativo quando se torna exagerada. Se Mackenzie tem poucas falas que trazem sentido ao roteiro, Josie tem menos, e, ainda, aparece pouco na composição imagética, restando às atrizes que as interpretam breves expressões estáticas. O resultado dos enquadramentos é sempre belo, retratando a frieza nas cores que retratam a melancolia da personagem. Mas, infelizmente, o filme acaba se tornando um apelo comum do cinema mainstream atual, um grafismo da imagem agradável que muito se pretende complexa, mas que, na realidade, termina se assumindo de forma chapada, sem profundidade.

Da vida de Mackenzie sabemos pouco, pois não interagimos muito com ela. Podemos sentir algo de sua dor pela ausência da mãe, seu cuidado com a irmã, seu breve despertar amoroso com seu amigo de infância, Wood, sua solidão. Mas nada disso tem força suficiente para romper a superfície da imagem e nos atingir subjetivamente. Todas as Estradas Têm Gosto de Sal gasta muito tempo filmando abraços, olhares vagos, rostos inexpressivos, e perde uma grande oportunidade de realmente fazer da memória um constituinte do presente de sua personagem principal, da relação de seu contexto social e seus traumas da infância até a vida adulta.

Nota:

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