Julie Permanece em Silêncio | 2024
A complexidade dos casos de abusos no esporte
Infelizmente, vemos com certa frequência nos noticiários esportivos casos em que atletas foram vítimas de assédios (moral ou sexual) por alguma pessoa de seu staff. Esses casos não se resumem a atletas de pouca expressão a nível mundial ou em modalidades menos acompanhadas pelo público em geral. Basta lembrarmos de casos como o da ginasta Simone Biles, vítima de assédio sexual por um médico da seleção de ginástica dos Estados Unidos, e de Joanna Maranhão, nadadora brasileira vítima de assédio sexual praticado por seu técnico. Em específico no tênis, esporte tratado pelo longa-metragem Julie Permanece em Silêncio, temos muitos casos que vieram a público nos últimos anos: Catherine McNally, Kylie McKenzie, Fiona Ferro e Jelena Dokic.
O filme dirigido pelo belga Leonardo Van Dijl trata desta importante temática: abusos cometidos por treinadores que vitimam atletas, jovens em sua maioria. Quando se olha para os seus produtores e produtores executivos do longa, vários nomes chamam bastante atenção. Entre os produtores estão Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne. E entre os produtores executivos, está a tenista ianque Naomi Osaka, ganhadora do US Open de 2018 e que chamou atenção do circuito de tênis ao afirmar sofrer depressão, o que, inclusive, a fez desistir de importantes torneios, trazendo luz a importante discussão acerca da saúde mental dos(as) atletas de tênis.
No longa, temos Julie (Tessa Van den Broeck), uma promissora atleta de tênis que vence grande parte dos seus jogos no clube em que treina. Ali, em sua equipe, é alvo de inveja e picuinhas por parte de outros atletas, mas também é “favorecida” por não ter que pagar as aulas que recebe e, de certa forma, por atrair mais atenção de todos por conta de sua técnica fora de série.
O cenário sempre competitivo, sobretudo na fase de “juniores”, se desenrola até que uma notícia que choca a todos se espalha: Aline, uma ex-atleta bastante promissora, a primeira do clube a atingir importantes conquistas na modalidade, comete suicídio. Ela era treinada por Jeremy (Laurent Caron), também treinador de Julie. Várias questões são levantadas acerca da tragédia, e a que mais ganha atenção é a de que ela era vítima de abusos.
A partir desse momento, todos os olhares de desconfiança recaem sobre as atletas treinadas por ele: teriam sido também vítimas de abusos? E aqui, o diretor não nos traz uma “resposta simples”; pelo contrário, ele explora de forma muito competente todos os vieses e nuances que essa relação complexa e muitas vezes complicada/conflituosa entre atleta e treinador carrega.
Os silêncios de Julie deixam transparecer inúmeros sentimentos. Dentre eles, destaco a ideia de que o seu sucesso enquanto tenista e, consequentemente, o destaque que possui entre as atletas de sua idade, são, em boa parte, devido aos bons treinamentos que recebeu de Jeremy. Assim, parece que denunciá-lo seria uma espécie de ingratidão por parte de quem fez evoluir o seu jogo.
Enquanto o espectador espera por respostas mais concretas do que ocorreu naquele clube, o diretor investe nas cenas de jogos e treinos de tênis, que são magistralmente encenadas, conferindo uma enorme aproximação com o que, de fato, acontece nos jogos e treinos, o que não é fácil de se ver. O quão fidedignas são essas cenas faz com que o público se sinta muito mais inserido naquele contexto, o que faz total diferença na experiência de assistir ao filme.
Nesse contexto, é importante destacar um personagem: Beckie, o novo treinador do clube. Aqui, para além da temática central do filme, traz-se também a temática da desconfiança depositada em profissionais mais jovens. A ele é atribuída grande desconfiança acerca de sua idade e, até mesmo, do “baixo valor” que cobra pelas aulas, o que denotaria uma falta de expertise que aflige atletas e seus pais.
Para além de retratar de forma eficaz a dificuldade de jovens profissionais entrarem em certos mercados de trabalho, é bonita a forma com que o diretor traz a “paciência” e o equilíbrio que o jovem treinador carrega, mesmo sendo alvo de tanta descrença.
Em meio aos burburinhos envolvendo a tragédia ocorrida com Aline e os torneios que precisa disputar enquanto atleta juvenil, Julie segue seus treinos e rotina pessoal em silêncio, refletindo acerca de todo o turbilhão que a cerca, inclusive, mantendo contato com seu antigo treinador. Há muito, aqui, em torno do não dito e da pressão sofrida pela jovem atleta.
O desenvolvimento de sua carreira segue a passos largos, e Julie conquista feitos grandiosos para o clube que representa. Contudo, o sucesso desportivo parece não fazê-la completamente feliz: há sempre uma sombra que a persegue, impedindo-a de desfrutar os momentos de glória que alcançara.
O silêncio que se mantém em torno do ocorrido com Aline passa a ser quebrado quando Julie descobre que Jeremy conseguiu um trabalho em outro clube. Aquilo parece atingi-la em cheio e, ao contrário do que se possa aduzir do silêncio, faz o público perceber que ela em nenhum momento esteve indiferente: ela gravou o técnico em momento em que ele fala coisas comprometedoras a si próprio, manteve contato com atletas que depuseram contra Jeremy.
Assim, o silêncio esteve acompanhado, claro, do amadurecimento da ideia e, talvez mais que isso, da organização estratégica de como fazer essa denúncia. Mas ele nunca poderia ser compreendido como sua isenção. Julie depõe e se alia às vítimas de Jeremy. Neste contexto, vale, por fim, fazer um destaque à atriz Tessa Van den Broeck que, na sua estreia no cinema, possui uma atuação impecável em um papel complexo e desafiador. Assim, Julie Permanece em Silêncio é absolutamente competente em tudo o que se propõe a fazer, explorando, de forma inteligente, o silêncio da protagonista (que é trazido, inclusive, no título do filme) diante de um tema tão sério, delicado e, infelizmente, tão atual.
Esse filme foi assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra de SP, confira mais aqui