Um Homem Diferente | 2024
O estatuto da beleza
No livro O Banquete, o filósofo Platão reúne seus personagens em uma roda de conversa despretensiosa sobre o conceito de beleza, onde cada um apresenta sua opinião sobre o tema. Embora não haja uma conclusão definitiva após todos falarem, o discurso final de Sócrates, o mais célebre dos presentes na festa, é o mais marcante. Ele dá méritos a cada uma das concepções abordadas, desde a beleza do corpo até aquela representada pelas leis morais, mas termina por dizer que beleza é um ato de transcendência: aquilo que é idealizado e representa a perfeição, o imutável, o bom. Esse pensamento idealista platônico, apesar de tão antigo, é uma das principais influências do modo de vida ocidental. Servindo de alimento ao capitalismo moderno, a imagem de perfeição acaba por sucumbir identidades em meio ao mundo das aparências. É nesse sentido que Um Homem Diferente reflete os conflitos de um inconsciente repleto de dualidades entre o ver-se e o ser visto, um filme que flerta com o universo dos desejos e dos sonhos de David Lynch para questionar o estatuto da beleza.
Este parece ser um tema caro ao cineasta Aaron Schimberg, já abordado em seu longa-metragem anterior, Chained for Life (2018), e que se faz presente também aqui. As duas obras existem sobre um roteiro que explora a metanarrativa para pensar a representação daqueles que não se encaixam nos padrões estéticos. A primeira é um filme dentro do filme, do ponto de vista externo, que coloca o “diferente” como movimento aberrante, até a reivindicação das ditas “aberrações” pela construção de sua própria imagem – uma homenagem a Monstros (1932), de Tod Browning. A segunda, com referências a O Homem Elefante (1980) e Cidade dos Sonhos (2001), de Lynch, usa do teatro e do sonho para ser mais intimista, mostrando a fragmentação identitária de quem sofre com o subjugo do outro ao ser colocado como “feio”. Assistidos em sequência, os filmes até parecem se completar, um objetivamente, outro subjetivamente.
Se entendermos tais inspirações e o fato de que estamos diante das perturbações do solitário Edward (Sebastian Stan), Um Homem Diferente ganha em significados. Sujeito de postura retraída e olhar baixo, Edward Lemuel tenta viver como ator, mas se vê relegado ao modo como sua face é vista pelos outros. Portador de neurofibromatose, uma condição genética que causa o crescimento de tumores nos nervos, sua principal atuação é em um comercial empresarial que alerta aos funcionários para serem gentis com colegas “deficientes”, “mesmo que nosso instinto diga o contrário”.
Toda contextualização do personagem é feita para refletir o desconforto que ele sente – aí entram artifícios que remetem ao onírico. O apartamento não é totalmente iluminado, sequer vemos detalhes dos móveis ou coisas que evidenciem a personalidade de Edward. Há o buraco no teto que aumenta a cada dia, gotejando uma água imunda. Caminhando sempre de ombros retraídos, Edward é receoso, olha para todos os lados como se estivesse esperando que alguém falasse alguma coisa sobre sua aparência. Sebastian Stan é preciso ao colocar trejeitos de movimentos e falas em sua atuação, fazendo com que todos os elementos nos levem ao mundo interior dessa figura. É certo que estamos diante de alguém que tem medo da forma como é visto pelos outros.
Isso começa a mudar por dois motivos: um experimento médico que promete a “cura” e o surgimento de sua nova vizinha Ingrid (Renate Reinsve). Entretanto, as duas coisas são mais uma projeção de Edward do que a realidade. Os médicos que o examinam são estranhos, carregam o arquétipo do “cientista maluco” e pouco trazem a seriedade necessária para lidar com o paciente e suas expectativas. A vizinha surge repentinamente e é acolhedora com Edward, parecendo sequer ter notado a neurofibromatose (ao contrário da habitual repulsa que o afetava). É como se ela estivesse além dos filtros sociais que tanto marcaram a presença de Edward.
Depois de Ingrid, coisas incomuns começam a acontecer, como se projeção e realidade estivessem em choque. O experimento médico começa a fazer efeito e os tumores no rosto de Edward começam a desmanchar, um ferimento em seu dedo cura milagrosamente, pessoas aleatórias o encontram na rua e dizem que o conhecem. Tal estranhamento reforça uma subjetividade fragmentada entre dois polos: o ideal e o real; ou seja, a forma como ele gostaria de ser visto (e não é) e como ele mesmo se vê no espelho do mundo. Edward é um inconsciente sendo dominado pelo estatuto estético a sua volta.
É essa dominação que o faz querer um novo rosto. Então, um certo dia, seus tumores somem e ele agora tem a face enquadrada nos padrões de beleza, não é mais um homem diferente. Mais uma vez Stan mostra sua habilidade e muda totalmente os trejeitos que tivera na primeira parte do filme. Agora Edward assume uma outra postura, confiante, iluminado e extrovertido. Sua primeira reação é sair e se embebedar, gritar dentro de um bar e estar, mesmo assim, dentro da “normalidade”, transar sem notar repulsa, enfim, se sentir parte da sociedade.
Mas, Schimberg inverte todos os papéis para fazer com que seu personagem caia em descrença e perceba que o conceito de beleza é a construção social que o afetou. Edward acorda em outra realidade, em outra casa, agora um corretor de imóveis bem sucedido e com o nome de Guy Moratz. Apesar de confuso com a mudança, parece feliz. Isso até o momento que cruza com Ingrid Vold, não mais a sua vizinha, mas uma dramaturga de sucesso que está montando uma peça chamada “Edward”, retratando a história de um personagem com neurofibromatose. Não é coincidência, mas sim a projeção inconsciente do verdadeiro Edward que cai em ruínas ao ser atravessado pela identidade que lhe foi imposta durante quase toda a vida.
Um Homem Diferente, então, torna-se um pesadelo. Guy Moratz fica aficionado em participar da peça já que entende que o personagem principal é a representação dele mesmo na outra realidade, logo, seria perfeito para o papel. Mas, agora seu “belo rosto” que se encaixa na sociedade não serve para a peça, ainda mais depois que Oswald (Adam Pearson) aparece em um dos ensaios e chama atenção de Ingrid. Oswald tem a condição genética necessária para o realismo pretendido pela diretora. Sua presença instaura novamente o desconforto que víamos no início da projeção. Guy não é mais aceito e ele tem a mesma sensação de outrora: seu rosto não lhe autoriza estar ali.
Esse é um processo dolorido que leva Edward/Guy ao delírio, sem saber quem realmente é e o que seu rosto representa nos espaços que habita. Aaron Schimberg é habilidoso nesses dois momentos do filme, articulando movimentos aberrantes para sua própria câmera, como os zooms rápidos e os close-ups duradouros, também para a trilha sonora, que ora se aproxima dos clássicos de terror do início do século XX, ora do improviso moderno do jazz, bem como nos pequenos diálogos e olhares que não fazem sentido instantaneamente, mas estão ali com uma função importante dentro do sonho.
Stan, Reinsve e Pearson estão ótimos. Os dois primeiros são capazes de mudar suas personalidades na segunda parte do filme, com Stan ainda trazendo lapsos de Edward em momentos vulneráveis de Guy, enquanto a entrada de Pearson é uma das coisas mais potentes do filme. Ironicamente, esta última atuação vem sendo ignorada pelas grandes premiações, como já previa a epígrafe de Chained for Life: Pearson não é tido como o rostinho bonito de Hollywood. Schimberg, em seu terceiro longa-metragem, já demonstra ser um cineasta autoral propenso a trabalhar aquilo que o comove sem as convenções lógicas e didáticas da atualidade.
Talvez tudo que vemos em Um Homem Diferente estivesse, deveras, dentro da mente de um “homem diferente” disposto a fazer procedimentos cirúrgicos para ter um “rosto comum” e se adaptar. É a primeira imagem que vemos: os tumores da face que aparecem em uma espécie de ressonância magnética. Um homem com um peso enorme nas costas por conta daquilo que sua imagem representa para a sociedade, sem que ele queira, mas como refém de um estatuto da beleza.