A Semente do Fruto Sagrado | 2024
Estamos tão acostumados a receber, seja através do cinema, seja pelos noticiários ou nas telas de nossos celulares, informações sobre teocracias e ditaduras que violentam e mantém pessoas (principalmente, mulheres) subjugadas, que uma certa insensibilidade diante de uma nova passagem do tema pode calhar como um distanciamento oportuno e fácil, que nos protege, de alguma forma, das dores da empatia e da indignação por experiências que não são nossas. Poderia ser esse o caso de A Semente do Fruto Sagrado, dirigido pelo iraniano Mohammad Rasoulof. Não é difícil que, diante de nossos ouvidos e pensamentos, passem ideias de prejulgamento da obra como “mais um filme iraniano sobre uma situação opressora”. Sim, mais um filme iraniano que vem denunciar outro desolador crime do Estado contra sua população. Mais um filme iraniano que grita contra um regime que desumaniza pessoas, e aqui, especificamente, mulheres.
O cineasta, exilado na Europa, que recebeu o Jury Special Prize e o Fipresci Award no Festival de Cannes 2024, sabe bem o caminho para provocar a necessária sensibilização sobre a urgência e a gravidade dos acontecimentos que nos mostra – e o faz não através das facilidades que um melodrama possibilitaria, mas por meio de um thriller que vai nos situar no seio de uma família privilegiada, cujo patriarca é, justamente, um operador da repressão estatal.
Iman (Missagh Zareh) é o progenitor de uma família irrepreensível, que trabalha como investigador e se vê, após anos de trabalho dedicado, promovido a juiz de instrução, o que significa a elevação do status social de sua família, maior conforto financeiro e o gozo de benefícios como o direito a uma casa oficial. A irrepreensibilidade familiar é zelada por sua esposa, Najmeh (Soheila Golestani), responsável pela educação das filhas Sana (Setareh Maleki) e Rezvan (Mahsa Rostami). Com a promoção do pai, aumenta a necessidade de que a moral e os bons costumes reinem naquele lar. Qualquer ideia aversa, como pintar os cabelos e as unhas, mancharia a imagem que a família precisa manter. Paralelamente à oportunidade de ascensão social, uma onda de protestos começa a circular pelas ruas de Teerã, após a morte de uma jovem sob custódia policial, por supostamente ter violado a moda ao usar impropriamente seu hijab (tema que aparece também em Meu Bolo Favorito, que assistimos no Festival de Berlim em 2024), acontecimentos reais ocorridos em 2022, e que deixaram quase 300 mortos.
A Semente do Fruto Sagrado vai construindo nossa sensibilização sob a falsa percepção de que irá escalonar, ao situar a trama fictícia no contexto social e político real, o núcleo familiar privilegiado no caos externo. Não escalona, mas usa das causas e consequências de acontecimentos ocorridos dentro daquele micro convívio que vão se sobrepondo para revelar, posteriormente, o que verdadeiramente importa daquilo tudo. Essa sobreposição de ocorrências confunde ao soar como uma justaposição de relevância de fatos, mas que vamos compreendendo tratar-se das muitas peças de um todo que visa um objetivo coletivo único e uniforme.
O filme se passa quase que integralmente no interior do apartamento da família. Rasoulof parte daquele núcleo privado e privilegiado que goza da proteção de um ambiente seguro (uma prisão das mulheres dali), para mostrar o exterior caótico quase sempre por intermédio de algo. Quando fora do apartamento, as personagens permanecem em seus carros, o contato com o externo mediado pelos vidros. Quando na casa, observam a realidade lá fora através dos noticiários de TV controlados pelo Estado. As mais jovens, que contestam a veracidade do que é noticiado, atualizam-se por vídeos que assistem em seus celulares. Do lugar doméstico seguro, há um esforço para que elas se mantenham alheias e tão distantes dos protestos e seus riscos quanto nós, quase como se estivessem representando o olhar do próprio espectador – não fosse o comportamento subversivo, afrontador e questionador das jovens filhas, que assistem tudo com indignação, e que findam por colocar o risco dentro de casa, ao acolherem uma amiga que sofre com a violência policial.
As preocupações do patriarca é que vão ditando os rumos que a esposa direciona a família, bem como a mudança de tom que o filme vai moldando. Se inicialmente teme-se pelo dever a ser cumprido pelo pai, agora como juiz de instrução, (e portanto, pessoa que sentencia penas de morte) que trabalha até mais tarde e se distancia da casa, e pela imagem impecável a ser mantida, a onda de protestos vai ocupar esse lugar e o objetivo passa a ser manter as filhas afastadas das manifestações. O rumo das aflições muda novamente quando a arma carregada pelo pai some dentro de casa, dando lugar a uma atmosfera de desconfiança e medo. As inquietações coletivas vão dando, portanto, abertura para desassossegos cada vez mais privados, o que revelará que a natureza egoística daquilo que o pai (representante, portanto, da própria figura do Estado) busca controlar.
Muito embora a figura do genitor funcione como executor do controle do Estado dentro do seio familiar, o protagonismo de A Semente do Fruto Sagrado é a figura da mãe. Para além de ser peça central do longa, a personagem de Soheila Golestani é, quiçá, a mais interessante do quarteto nuclear. Najmeh, que entorna o marido de cuidados e opera com ele o rigor das regras do lar em total acordo com a moral e bons costumes legalmente exigidos, tenta equilibrar a rigidez com o acolhimento que ela não nega às filhas. Ela sai do lugar de “apetrecho” que serve ao marido e que sonha com o novo status social, para tomar consciência junto às filhas, na medida em que a opressão e a violência vão se tornando cada vez mais frontais. As três, mãe e filhas, vão atuar em corajosa sororidade diante do reconhecimento de si mesmas como objetos a serem manipulados.
As nuances e transformações de tom do filme acompanham, ainda, a personagem materna, cuja mudança de comportamento vai se tornando notória, aumentando a atmosfera de suspeitas que toma forma. É ela quem traz, além disso, cenas bastante contemplativas que envolvem o cuidado que ela presta ao marido, evidenciando que, mesmo que o marido atue como autoridade, é dela que dependem toda a compostura familiar. O diretor, não obstante trabalhar a maior parte da obra em ambientes fechados, faz bom proveito dos momentos de contemplação para criar focos de luzes belíssimos, que parecem transcender os personagens, como quando Najmeh corta o cabelo e faz a barba de Iman, desgastado pelo trabalho.
Se há um incômodo a ser mencionado em A Semente do Fruto Sagrado e que finda por destacar-se muito, é o uso excessivo de resoluções fáceis de roteiro para o fechamento de alguns acontecimentos ou para a atribuição de algum efeito dramático pretendido pelo diretor. Isso ocorre de forma bastante evidente, por exemplo, quando Sana intenciona que a mãe saia do apartamento e diz que está sem absorvente íntimo. Najmeh oferece o dela, mas a filha insiste que “precisa dos absorventes finos”, tese que é comprada com surpreendente facilidade. Sobressai, ainda, o oferecimento de uma arma à Iman por um colega de trabalho depois de todo desespero que gira ao entorno do sumiço do artefato. “Tenho duas armas”, é a justificativa do amigo apenas para que haja, na cena final, dois revólveres em jogo, o que naturalmente aumenta a tensão.
Nessa justaposição das tramas, de repente, não importam mais os protestos, importa a arma perdida. Subitamente, não importa mais a arma, importa o controle da família. No fim das contas, o que percebemos importar mesmo, e que é aquilo que fundamentalmente o patriarca busca proteger, usando, para isso, a esposa como instrumento de suas operações e tornando-se juiz da própria família, é a manutenção dos privilégios dos opressores no poder, sob o manto da ditadura, da teocracia, da proteção da honra masculina ou da família – motivos, nomes e roupagens nunca faltarão.