A Conversação | 1974
O Filme Intimista de Francis Coppola
por Matheus Oliveira
É difícil assistir A Conversação e não pensar nele como um paralelo da profissão de seu diretor, Francis Ford Coppola: o protagonista, Harry Caul (Gene Hackman), vigilante particular, passa o dia todo enfurnado em um galpão cercado por um aparato tecnológico. Remete à ilha de edição utilizada para editar filmes: a imagem de Hackman, curvado sobre a “ilha”, é análoga à do diretor – ou do editor – vidrado em sua moviola. Quando Caul não está no galpão, está no furgão com sua equipe de vigilância escutando conversas alheias, distante de quem vigia. Coppola, com o tempo, também ficaria assim: isolado, distante do elenco, só ditando ordens por rádio também entocado em um veículo).
A ideia do filme surgiu do interesse do diretor pela tecnologia (era uma época na qual novos equipamentos surgiam – e ele, assim como seu amigo George Lucas, eram nerds nesse quesito); além de ter servido como um lobby para o editor de som, Walter Murch (futuro ganhador do Oscar com Apocalipse Now), cuja trilha sonora que editou (o compositor foi David Shire) é sombria, repleta de nuances e com ar experimental (uma das inspirações de Coppola foi o inovador Blow Up, de Michelangelo Antonioni, também possuidor de um engenhoso trabalho de som).
O diretor filma, o vigilante vigia – ambos são voyeurs, embora com profissões distintas. Aliás, central em A Conversação não é bem o voyeurismo – que é importantíssimo –, nem a proximidade cada vez mais intensificada entre o observador e os observados; mas outra questão: a natureza ambígua do objeto investigado (o casal de amantes). Personagem complexo, Harry Caul é católico fervoroso (não fala o nome de Deus em vão, nem gosta que falem), retraído e cheio de culpa religiosa (a futura falta de privacidade como uma analogia aos olhos oniscientes de Deus). Mesmo assim, interessa-lhe o trabalho de bisbilhotar – ainda que diga que só quer conseguir “uma boa gravação”. Ele tem uma tarefa a ser feita: gravar numa praça movimentada de São Francisco a conversa entre a esposa de seu patrão (Cindy Williams) e seu amante (Frederic Forrest) – porém, através de algumas frases captadas, ele suspeita que os dois correm risco de vida. Lutando contra sua própria consciência (em um serviço anterior, parecido com o atual, ele provocou a morte de pessoas inocentes), Harry decide intervir – só para descobrir que cometeu um erro de interpretação ao ignorar, de forma fatal, a entonação em uma frase crucial (“Eles nos matariam por isso”), que conta outra história tenebrosa: era o próprio casal o perigo. Considerando que o longa parece traçar um paralelo entre o personagem e seu criador, Harry é ludibriado pela própria trama que Coppola lhe impôs que seguisse: quase como se o diretor/roteirista, no processo de escrita do roteiro, ainda estivesse conhecendo a natureza dos amantes enquanto os escrevia. O objeto investigado só é ambíguo (a reviravolta sobre os dois só é revelada no fim, daí a ambiguidade) porque o julgamento de Harry o é (o profissional mistura-se com o pessoal; atacam-no a culpa católica e uma paranóia crescente).
O campo dramático de A Conversação reside na interpretação que Harry Caul faz dos áudios captados do casal – o drama se intensifica à medida em que a pressão para entregá-los ao patrão aumenta (reminiscências de um Coppola antes de O Poderoso Chefão, atormentado pelos engravatados da Paramount). Reside também no que ele percebe na entonação das vozes constantemente repetidas (a frequência com que se repetem, cria uma espiral de tensão rítmica). Harry decifra um enredo misterioso cujo desfecho desconhece – assim como o espectador. Como um bom profissional, ele não pode criar nenhum vínculo emocional com os suspeitos – mas cria de tanto ouvi-los falar.
Em certo momento, a mulher grampeada passa por um mendigo, e comenta: “Eu sempre penso a mesma coisa: que um dia essa pessoa foi o bebê de alguém”. Tal fala comove Harry, e humaniza os vigiados (assim diminuindo a possibilidade de vê-los como culpados). Outra fala, no entanto, agora proferida pelo amante, cisma-o: “Eles nos matariam por isso”. Antes indiferente por conta do distanciamento profissional, agora se importa com o casal. Curiosamente, a transição do alheamento de Harry para a sua definitiva comoção acontece através de um processo subjetivo: a repetição das falas e do cantarolar de Cindy Williams cria uma graciosidade rítmica, uma beleza sonora, impregnando o ambiente de onirismo, assim pondo abaixo a linha tênue entre o real e o mental: na cena em que Harry dorme com Meredith, ele se deita enquanto a voz de Cindy é reproduzida – não se sabe, porém, até que ponto a voz termina de tocar no aparelho e começa na própria cabeça de Harry, indicando com isso que a sua consciência começa a pesar. Aliás, com relação à voz de Cindy Williams: Coppola parece ter noção da beleza vocal da atriz, beleza que “enfeitiça”: como uma sirene mitológica, seduz com seu canto quem o ouve. Harry é um desses? Talvez – aliás, o personagem de Frederic Forrest não tem o mesmo destaque de Williams (ele nem aparece na cena do pesadelo).
Em uma festinha organizada no seu local de trabalho, após uma convenção de tecnologia, Harry – em rara descontração – convida alguns amigos e colegas para confraternizar, inclusive seu rival de negócio, Bernie Moran (a sonoridade de seu sobrenome lembra a palavra moron, tradução para “idiota”, sutil trocadilho de Coppola). Este, curioso para saber qual façanha Harry utilizou no tal serviço anterior, faz-lhe inúmeras perguntas, infla o seu ego com o intuito de arrancar-lhe a informação – só para no fim da festa surpreendê-lo com uma escuta implantada numa caneta, posta no bolso de seu paletó (tudo o que ele confidenciou a Meredith foi gravado, mulher que mais tarde iria ludibriá-lo). Harry se irrita por ter baixado a guarda, e manda-o embora (assim como a todos).
Parece não haver privacidade em A Conversação, nem mesmo para o até então insondável Harry Caul. A sequência inicial na praça revela um protagonista soberano, dominante (embora seu jeito introspectivo revele certa fragilidade que no futuro se descortinará) que tudo vê e escuta. Inicialmente possuidor da visão panóptica da sociedade (tem homens seus em vários cantos, em janelas de prédios, misturados com a gente comum, completamente indiscerníveis), bastam alguns minutos para que se revele um Harry vulnerável: alguém invade seu apartamento sem que ele saiba, e ainda descobrem a data de seu aniversário. Mero subalterno, Harry é apenas uma peça de um intrincado sistema paranóico (a empresa que o contrata não tem nome, não se sabe o que ela é – lembra uma dessas instituições orwellianas): com efeito, o vigilante é por ela infectado e por fim destruído (à procura de uma escuta em seu apartamento, vira-o de cima a baixo).
Com frequência, o Cinema e a realidade se aglutinam: a história de A Conversação como um retrato de sua época, reflexo do conturbado momento pós-Watergate (escândalo político envolvendo o ex-presidente Richard Nixon, que liderou um vasto sistema de espionagem dentro do próprio governo). Às vezes, é tênue a linha entre o assunto ficcional e o assunto pessoal do artista: a trama tensa de Harry como um paralelo à luta criativa do próprio Francis Coppola (na sessão dos primeiros cortes, os produtores torceram o nariz, alegando que o longa não tinha história). A jornada de A Conversação segue um sujeito que, inicialmente estável, dominando a situação, se autodestrói ao se obcecar por controle e poder sob sua vida e seu trabalho. Isto é basicamente a própria jornada de Coppola, de início prestigiado por sucessos de bilheteria (O Poderoso Chefão: Parte I e II), depois rejeitado pela indústria por fracassos financeiros, resultado de excessos desenfreados (No Fundo do Coração, produção caríssima e megalomaníaca, é o maior dos exemplos).