5 Filmes Sobre a Razão Instrumental
Propomos um exercício ao leitor: agora, daqui, do momento em que lê o texto, como imagina o futuro da humanidade? Estamos nos encaminhando para a evolução moral e tecnológica, ou rumamos ao precipício, causando a destruição em massa de nossos próprios recursos? Os otimistas vislumbram o fim das guerras, da violência e da fome; os pessimistas acreditam que a ganância vai manter ou piorar nossa condição.
Talvez seja mais fácil imaginarmos um futuro distópico. Esse conceito é, de certo modo, recente dentro da Filosofia, nascendo da desilusão contemporânea e dos reflexos da globalização. Antes disso muitos pensadores escreveram sobre sociedades ideais, ditaram fórmulas que fariam com que tudo funcionasse perfeitamente, afirmaram a Ciência como a resolução de todos os nossos problemas. Ora, o ser humano se diferencia dos outros animais justamente pelo uso da razão, portanto seria ela que nos levaria ao controle absoluto de tudo à nossa volta. O auge da humanidade!
Mas, afinal, como seres tão racionais são capazes de causar sua própria miséria? Basta uma rápida pesquisa para comprovarmos que o mundo está em decadência. Colapsos ambientais, catástrofes, extrativismo, neocolonialismo, guerras, tiranias, ameaças nucleares, intolerância religiosa, abusos de toda forma, feminicídios, homofobia, violência policial, racismo, movimentos conservadores em crescimento, fome, etc. Os sonhos utópicos agora esfarelam, pois foram implodidos. É desse tipo de razão que estamos falando? Por que ela ainda não nos salvou?
Pelo menos é esse o diagnóstico que Theodor Adorno e Max Horkheimer fizeram em meados do século passado. Advindos da chamada Escola de Frankfurt, movimento filosófico e sociológico surgido nos anos 1920, os dois filósofos alemães escreveram sobre a razão instrumental. Em A Dialética do Esclarecimento, livro de 1947, fizeram essas mesmas perguntas que trouxemos acima. Entenderam que o projeto da humanidade está em falência e a razão não tem servido como se esperava. Isso porque ela foi instrumentalizada pelo sistema, tomada pelo modo industrial/capitalista de vida.
Adorno e Horkheimer viveram a ascensão do nazismo na Alemanha e puderam ver seu resultado na Europa. Ou seja, presenciaram os horrores da guerra e constataram que realmente não era essa a nossa ideia de civilização. Foi então que forjaram a teoria crítica, filosofia que seria capaz da autocrítica, que teria por função esmiuçar as entranhas da razão e pensar como ela acabou sendo tomada como elemento de opressão ao redor do mundo. A racionalidade nos tirou a humanidade.
A razão instrumental é o resultado construído por nossa forma de pensar ao longo dos tempos. Outrora, na modernidade, filósofos como René Descartes e Immanuel Kant sonharam com uma razão libertadora, a iluminação que nos levaria à autonomia. Mas Adorno e Horkheimer percebem aí o surgimento de uma subjetivação do pensamento. Essa luz acabou por ofuscar outras coisas importantes ao ser humano. Cada vez mais passamos a usar a razão para interesses próprios, para manipulação. A autonomia se transformava, então, em individualismo, em competitividade. Passamos a elaborar meios de oprimir outras pessoas e povos. Colonizamos não só territórios, mas formas de ser e estar no mundo.
No cinema, essa temática rendeu grandes clássicos da ficção científica. A distopia se transformou em um dos temas mais bem sucedidos da atualidade, dando imagens à sociedade do futuro e demonstrando suas mazelas. Essas obras são avisos de como podemos acabar se continuarmos agindo pela razão instrumental. O que podemos fazer para que o mundo não se transforme em Mad Max, Matrix ou Fahrenheit 451? Adorno e Horkheimer são pessimistas e escrevem sobre a dificuldade de reverter essa situação, mas apontam a necessidade de uma razão crítica capaz de nos devolver a humanidade e o espírito coletivo. Há uma saída?
A lista que nos dispomos a escrever não tem por objetivo encerrar o tema ou, até mesmo, servir como ilustração da teoria dos dois filósofos. Entendemos que os filmes citados abaixo nos levam a uma inevitável reflexão sobre a construção da razão opressora e, realmente, nos servem como um letreiro luminoso dizendo: cuidado com o que você está fazendo! Certamente, recomendamos uma leitura atenta das obras de Adorno e Horkheimer para uma melhor compreensão do assunto e de como esses filmes podem servir à razão crítica.
- METRÓPOLIS (1927) – FRITZ LANG
Talvez o filme mais consolidado entre todos da lista, Metrópolis é um pioneiro dos épicos distópicos. Há tempos se fala da ambição de Fritz Lang e Thea von Harbou ao idealizarem essa sociedade futurista cheia de arranha-céus, aviões, carros e propagandas luminosas, prevendo o que viria a ser uma cidade grande de nossa época. Maquetes minuciosas, cenários imensos construídos em estúdio, milhares de figurantes e técnicas inovadoras marcaram essa obra como revolucionária.
Mas, além disso, Lang e Harbou trouxeram no roteiro uma preocupação que viria a se notabilizar nas décadas seguintes: os reflexos da industrialização. Metrópolis é sobre divisão de classes, a desigualdade que aflige as populações de centros urbanos, é sobre trabalho e exploração. Toda a imensidão que se vê na superfície da cidade é sustentada pelo trabalho desgastante de operários que vivem na chamada Cidade dos Trabalhadores, lugar subterrâneo onde todos são levados à exaustão de suas forças, onde o tempo é maquínico, coreografado no ritmo das grandes engrenagens. Quando um turno acaba, outro precisa começar imediatamente e tomar sua posição, ou a cidade não irá se movimentar.
Essa oposição entre o luxo de cima e a precariedade da vida abaixo do solo é o plano de fundo para uma trama romântica, aos moldes do expressionismo alemão, entre Maria e Freder. Ela é uma das trabalhadoras do submundo; ele é filho do dono de Metrópolis, o magnata Joh Fredersen. Da primeira mirada de Freder sobre Maria nasce o amor e uma revolução interna no personagem. Transparecendo uma ingenuidade infantil, o herdeiro da cidade passa a conhecer o mundo real, aquele que não vê na superfície com a qual estava habituado. A condição indigna de vida dos operários e sua exploração fazem-no contorcer de indignação e solidariedade. Maria é o despertar de um sentimento inédito em Freder, levando-o além do amor, até a consciência de classe de seu privilégio em detrimento do sofrimento de outros. A partir de então, sua saga heróica é reencontrar Maria e se tornar o mediador entre os trabalhadores (a mão) e aqueles que governam (o cérebro).
“Entre a cabeça e as mãos deve haver o mediador que é o coração” – é o que vemos já no prólogo do filme e o que se segue até o final. Esse enredo passa por algumas reviravoltas maniqueístas que envolvem um “cientista maluco” e a famosa robô Hel, que depois assume a imagem de Maria. Para além do bem e do mal e dos traços do expressionismo alemão, Metrópolis nos remete ao conceito de razão instrumental pensado por Thedor Adorno e Max Horkheimer quando evidencia o conflito entre a globalização e a humanização. Joh Fredersen é fundamental para entendermos essa questão, já que ele representa o que há de mais instrumentalizado no pensamento. Sua visão é empresarial, com números, valores, procedimentos, botões a apertar e máquinas a girar. O “cérebro” nada mais é do que a organização e manutenção de todo esquema exploratório da cidade. Mesmo sabendo do martírio dos trabalhadores e da afeição de seu filho para com eles, o que lhe interessa é a grande máquina, esta que gira o capital. Toda ciência e tecnologia a seu dispor servem a esse propósito.
Cabe, então, a Freder e Maria representarem a humanização, lembrarem que as máquinas são movidas por forças humanas, pelo suor dos operários. Não há progresso se na sociedade nem todos são vistos como seres humanos. Nesta épica jornada do herói, Lang nos leva a uma resolução otimista e até simplória, ao contrário do que pensavam os filósofos, onde a razão opressora se converte no alinhamento entre cérebro, coração e mãos, rumo à evolução saudável da coletividade. Se o futurismo construído pelos autores na década de 20 se aproxima tanto de nosso tempo não é por esse otimismo, afinal, estamos longe de descolonizar a razão e revertê-la ao bem-estar de todos.
- O DIA QUE A TERRA PAROU (1951) – ROBERT WISE
Quando uma nave espacial pousa em um parque de Washington, capital dos Estados Unidos, cria-se um misto de medo e curiosidade na população. A ameaça gera uma movimentação militar massiva, aguardando qualquer tipo de represália por parte dos seres que poderiam estar ali dentro. Os populares se aglomeram em torno da nave criando teorias sobre a estranha visita. Quando uma porta se abre, para a surpresa de todos, sai de lá uma figura humana que logo diz ter vindo em missão de paz. Mas isso não basta, já que no primeiro movimento “suspeito” é alvejado por um tiro.
Apresentando-se como Klaatu (Michael Rennie), o sujeito é levado a um hospital e analisado de várias formas. Em pouco tempo ele se cura e continua insistindo que tem uma missão de paz urgente e solicita uma reunião com todos os líderes das nações do planeta Terra. Prontamente um representante do governo estadunidense diz que isso seria impossível, visto que vários estadistas não se falavam e por isso jamais habitariam a mesma sala.
Se levarmos em conta o contexto em que Robert Wise fez O Dia Que a Terra Parou, o discurso defendido por Klaatu e a forma como os humanos respondem ganha uma força ainda maior. Passada a Segunda Guerra Mundial instaurou-se a corrida nuclear da Guerra Fria. Estados Unidos e União Soviética protagonizaram um longo período da História de conflitos ideológicos, pautados por seus potenciais armamentícios. Um lado investia em sua consolidação capitalista, enquanto o outro na comunista. Descobrimos que é justamente esse o motivo que fez o alienígena ter vindo à Terra, um aviso que prevê o prejuízo cósmico que seria causado pelo uso indevido da energia nuclear nas mãos dos terráqueos.
Klaatu é a evidência da razão instrumentalizada na sociedade contemporânea. Nosso pretenso esclarecimento racional poderia ter utilizado a importante descoberta da energia nuclear para criar um mundo melhor, algo que a raça de Klaatu havia feito. Mas, resolvemos construir armas e utilizá-las como ameaças, mesmo que o uso de bombas atômicas colocasse em risco toda vida no planeta.
Afirmando que esse tipo de conflito é o que há de mais insignificante na racionalidade humana, o mensageiro espacial diz que seu povo já havia superado esse tipo de pensamento inferior e criado a paz, sem armas ou violência em seu convívio, e era preciso que fizéssemos o mesmo, ou seríamos destruídos. Depois do recado dado, Klaatu retorna ao seu planeta. Wise não nos dá respostas sobre como os seres humanos reagiram a tal notícia, largando em nossas mãos o problema desses conflitos absurdos e irracionais. Será que agora, depois de conscientes de que o uso da razão pelo poder nos levaria ao fim, encontramos a paz? Por enquanto, não.
- BRAZIL, O FILME (1985) – TERRY GILLIAM
A filmografia de Terry Gilliam evidencia seu apreço pela distopia e pelo surrealismo. Filmes como este, Os 12 Macacos e Teorema Zero operam sobre os dilemas de um futuro envolvido por uma tecnologia “suja”, ou melhor, por ferramentas de controle social e desumanização.
Em Brazil, O Filme, o diretor e roteirista imagina um mundo dominado pela burocracia. Tudo é registrado, cada movimento da população vira estatística, o mercado gira em torno dessas informações para reforçar as presas do consumismo exacerbado. São pilhas e pilhas de papéis para todos os lados. Sam Lowry, vivido por Jonathan Pryce, é um funcionário público que vive nesse ambiente frenético quando acaba se envolvendo em uma situação que vai revelar-lhe seu próprio contexto.
Nesse mundo, a vida funciona por meio da opressão, seja pela violência física ou pela limitação da ação e do pensamento. A razão se tornou tão instrumentalizada que os sentimentos são suprimidos e substituídos por números, por nomes e sobrenomes. São poucos os cidadãos que parecem sentir o peso do que os cerca. Lowry é um homem comum, mas que consegue imaginar um espaço para amar, para além da burocracia de sua vida. Ao se apaixonar por uma militante anti-governo tudo vira do avesso, como se agora tivesse a consciência plena do que significa aquele cenário que assistimos na tela.
Gilliam traz ao filme seu senso de humor já conhecido desde Monty Python, além, claro, da perspicácia na crítica social e política. Brazil, O Filme sintetiza com muita clareza o conceito de razão instrumental e antecipou algumas décadas muito do que vivemos hoje em nossa sociedade. Muito mais do que um ótimo exemplo da estética surrealista do autor, Brazil merece ser visto pelas lentes de Adorno e Horkheimer, pois é assustadoramente relevante para os dias atuais. Trata-se de um mundo sem espaço para a improvisação, uma ditadura identitária, definições por castas, raças, classes, luta por uma dominação silenciosa e pesada. Não muito distante do que vivemos hoje, no filme a imagem e o som são poluídos, as relações são frias e intermediadas pela tecnologia, o ser humano produz lixo e desolação, tendo a maior parte das pessoas se acomodado à situação. Nesse caso, a evolução da razão não caminha para a melhoria da vida.
- CARTAS DE UM HOMEM MORTO (1986) – KONSTANTIN LOPUSHANSKIY
Quando estoura a guerra nuclear, todos perdem. Em Cartas de Um Homem Morto, filme soviético de Konstantin Lopushanskiy, grande parte da população foi dizimada, os que restaram agora buscam sobrevivência no mundo subterrâneo, nos bunkers. Os recursos são escassos, subir à superfície só é possível com roupas especiais e com credenciais do governo, mas, mesmo assim, coloca-se tudo em risco. O que se vê é destruição e desespero.
Acompanhamos o Professor Larsen e o que lhe resta de esperanças na busca por seu filho desaparecido no desastre. Todos os dias ele lhe escreve cartas, talvez já sabendo que nunca chegarão às suas mãos, mas é como se ali, naquele contexto desolador, pudesse relembrar que ainda é humano. Professor, como é chamado, vive com seus colegas de trabalho embaixo de um museu, uma espécie de depósito/bunker que mantém alguns artefatos históricos guardados. Sua esposa agoniza em uma cama, então ele precisa sair em busca de analgésicos. É nesse momento que conhecemos o universo exterior, que vemos os rostos de outros personagens absorvidos pelo terror. Essas feições não são muito diferentes da sua, que, mesmo que as cartas sejam esperançosas, evidenciam o choque e o medo ao retornar e ver sua esposa morta.
Todo o filme é construído a partir da melancolia e o sentimento de que não há mais saída. Os personagens chegaram ao ponto de questionarem a sua própria humanidade e a razão que os emanciparia. Seria possível reconstruir uma sociedade? Ou estaria aqui a prova de que a razão sempre foi usada para oprimir? Esse dilema, comum a Adorno e Horkheimer, é muito bem exposto nos diálogos entre os habitantes do bunker do museu. Alguns carregam uma utopia de um novo mundo que se ergue após o desastre; outros preferem acreditar que somos um projeto falido.
O que torna o debate sobre a razão instrumental mais vivo no filme é o fato de termos um personagem principal acadêmico, professor que inclusive ganhou o Nobel. Larsen reluta com sua racionalidade para criar teorias e hipóteses sobre o que poderia acontecer com o mundo dali em diante, mas tudo vai se esfarelando. O museu, lugar que guarda a história da humanidade, sua produção artística, também está em ruínas. Parece que aquilo que produzimos não vale mais nada diante da nossa capacidade de destruição.
Quando os outros habitantes do bunker resolvem partir para outro abrigo, Professor Larsen fica e acolhe crianças que não têm onde viver. Em uma belíssima cena final, Lopushanskiy confronta a morte com a esperança representada por aquelas crianças. A lição que fica é justamente a de repensarmos a nossa racionalidade opressora. Somente um novo mundo pautado no afeto poderia pôr fim à razão instrumental.
- ROBOCOP (1987) – PAUL VERHOEVEN
Em um futuro próximo a cidade de Detroit, nos Estados Unidos, está tomada pela violência. As delegacias estão cheias, os assaltos, estupros e assassinatos acontecem cotidianamente. O poder público não consegue (ou não quer) resolver, optando, então, pela privatização da segurança. A mega corporação OCP teria a solução: a criação de policiais robóticos que seriam capazes de resolver o problema da criminalidade e seus efeitos.
É claro que em nenhum momento se considerou a complexidade social desse contexto ou alternativas que fossem às origens do problema. Pelo contrário, a OCP usa a mais alta tecnologia para combater a violência com mais violência. A cobaia é o policial Alex Murphy (Peter Weller) que, agonizando após combate com criminosos, tem sua consciência resgatada e transplantada a um corpo ciborgue, chamado de Robocop. Seria esse o protótipo de um combatente infalível que sai às ruas pronto para acabar com o crime.
De Murphy resta muito pouco, a não ser seu rosto, já que todo resto é controlado por um avançado sistema de computador. Mas, à medida que sua consciência é despertada a partir das memórias de quando era humano, Robocop se torna incontrolável. Percebe, então, que os planos da OCP não dizem respeito à resolução da violência, mas sim ao lucro da corporação que visa derrubar Detroit e construir um grande complexo futurista chamado Delta City. Qualquer semelhança com o neoliberalismo que a tudo quer privatizar e elitizar não é mera coincidência.
Paul Verhoeven usa de seu maneirismo para retratar uma sociedade entregue ao consumo. Os problemas sociais são trabalhados apenas aos interesses do capital. O pensamento emancipador é um valor monetário e não humanizador. Além de deixar clara essa ideia com o arco narrativo de Robocop/Murphy, o diretor também inclui pequenos comerciais televisivos ao longo da projeção que nos mostram ainda mais a concepção instrumentalizada da razão. Tudo gira em torno de um estratagema muito bem arquitetado que tem por objetivo a opressão.
Quais desses futuros será o nosso? Muito distante de servir como uma lista definitiva, nosso objetivo é trazer a reflexão sobre essa instrumentalização da razão que a cada dia nos leva a colapsos ambientais e sociais em todos os cantos do mundo. O que podemos fazer? A tarefa é complexa, como já nos alertavam Adorno e Horkheimer, mas a arte tem o poder de fazer despertar consciências e mudar ações concretas na realidade. As distopias estão aqui, chegando a passos largos; porém, também estão aqui nossas ferramentas que, além da razão, podem nos trazer uma visão realmente global, no sentido que a humanidade precisa.
Por uma razão crítica e por um afeto revolucionário!