Conclave | 2024
A politicagem religiosa
É inegável o poder que a Igreja Católica representa no mundo. Mesmo que não tenha a força de outrora, como na Idade Média, a figura do Papa ainda é o símbolo máximo de liderança religiosa, e suas decisões e conduta influenciam grande parte da sociedade. Se hoje podemos falar de uma aceitação maior às causas das minorias no catolicismo é por conta dos discursos de Papa Francisco, uma contraposição ao tradicionalismo de seu antecessor Bento XVI. Ou seja, cultura e religião estão intrinsecamente ligadas e as demandas sociais afetam e são afetadas pela Igreja. É essa complexa relação política que Edward Berger constrói em Conclave, filme que narra as tensões da eleição para um novo papado.
O conclave é um evento quase milenar que acontece quando, por algum motivo, um Papa deixa o cargo. Cardeais do mundo todo se reúnem na Capela Sistina, no Vaticano, para eleger um novo líder entre eles. Esse ritual misterioso pode se estender por dias, até que alguém atinja dois terços dos votos. Por fim, quando uma fumaça branca sai pela chaminé da capela é o indicativo que “habemus papam” e o trono sagrado foi ocupado. Tudo isso já é de conhecimento comum, visto que, quando acontece, a mídia faz uma extensa cobertura. O que se passa nas entranhas desse processo é o que habita o imaginário do povo e serve de matéria-prima para Berger, baseando-se no livro de Robert Harris.
Seguimos, então, o Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), responsável pela organização do conclave após o falecimento do Papa atual. Se retratar um evento tão misterioso já seria uma tarefa difícil, passa a ser ainda mais quando são inseridas subtramas que tornam tudo ainda mais penoso. Primeiro há uma crise de fé por parte de Lawrence, que já havia tentado se desvincular do cargo, mas teve seu pedido negado por Sua Santidade. Ele não consegue mais se concentrar na oração, e Fiennes deixa isso claro nas sutilezas de sua interpretação, quando coloca seus pensamentos vagando nos momentos em que deveria estar em total imersão espiritual. Depois, Lawrence precisa lidar com situações envolvendo os cardeais cotados para o trono, de tal forma a garantir a melhor eleição possível. Isso também envolve reuniões entre aliados para combinação de votos, como um grande plenário que discute seus interesses, benefícios e prejuízos de cada opção.
O grande mérito de Conclave é a evolução da ironia. O filme começa adotando um tom de seriedade muito compatível (e até esperado) com tudo que está prestes a acontecer. À medida em que a inquietação aumenta e novos fatos vão sendo colocados em pauta, os cardeais rivais adotam suas estratégias. Alguns são desprestigiados enquanto outros ganham relevância para o cargo em disputa. O que é interessante é que Berger sabe muito bem dar pequenas elevações no tom, não para tornar a cena engraçada, mas para dar-lhe contornos absurdos. Quando o espectador percebe os conluios e os segredos que habitam aquele espaço, tudo se torna irônico. A fala contida, quase sussurrada em alguns momentos, reverte-se em um grito ou um destempero que pode ser notado e que alteraria os rumos da eleição.
Nesse sentido, o elenco é muito importante. Já citamos a capacidade de Fiennes que interpreta o personagem principal, mas o acompanham Stanley Tucci, John Lithgow, Lucian Msamati e Sergio Castellitto. Todos eles fazem parte da cúpula que é benquista para assumir o papado e acabam protagonizando as reviravoltas do roteiro. Se Cardeal Lawrence parece ser o mais equilibrado, Tedesco (Castellitto) é o mais enérgico, Tremblay (Lithgow) o cínico, Adeyemi (Msamati) representa o conservadorismo e a rigidez, Bellini (Tucci) tem bons ideais, mas acaba se entregando às politicagens do sistema. Mas, entre eles, e ao lado de Fiennes como destaque nas atuações de Conclave, está Isabella Rossellini como Irmã Agnes. Mesmo com tempo reduzido em tela, sua expressão e a potência de suas breves falas causam um impacto gigantesco. Agnes é o símbolo de sobriedade naquele contexto extremamente ambíguo.
Há um elemento desestabilizador inserido na narrativa, que, para além dela, acaba confundindo o andamento da projeção: é a chegada de Cardeal Benitez (Carlos Diehz). Esse personagem é levado à parte dos outros, um estranho no ninho. Benitez é um sujeito com ideais humanistas, foi missionário em lugares devastados pela pobreza e pela guerra, é simples e reservado. Instaura-se um mistério sobre ele, porque, desde o primeiro momento, Berger indica que ele será importante, entretanto, acaba lhe dando pouca participação nos embates políticos do grupo. Isso causa uma certa desmedida, já que a relevância desse personagem aos outros acaba surgindo apenas no final, de forma muito repentina.
Quem assistiu Nada de Novo no Front (2022), obra anterior do diretor e que despontou nas premiações, sabe que uma de suas habilidades é o bom uso da trilha sonora. Aqui não é diferente: a música, mais uma vez do excelente Volker Bertelmann, acompanha a lentidão e a simetria dos planos para dar ênfase aos conflitos que se estabelecem. A fotografia é eficaz em trazer espaços íntimos pouco iluminados, misteriosos, ao mesmo tempo em que retrata a vastidão da grande instituição católica que vemos. Portanto, o diretor tem domínio dos aparatos técnicos e sabe como conciliá-los. Conclave é um trabalho até mais arriscado que o anterior e Berger é mais uma vez muito competente. Talvez o pecado aqui seja a ânsia por um debate politizado e atualizado que o levou a um descuido no final do filme: a organicidade se perde em prol de uma mensagem que não estava ali até surgir abruptamente e durar poucos minutos.