Santa Sangre | 1989
O Circo da Psique
por Gustavo Jacondino
Alejandro Jodorowsky, com sua abordagem violenta, teatral e simbólica, entrega em Santa Sangre (1989) uma obra que conversa com o giallo italiano, posicionando uma profunda exploração da psique humana realizada de maneira particular, bebendo da cultura local mexicana e das suas influências indígenas e europeias. Emoldurado pelo universo circense, o filme acompanha Fênix (Adan Jodorowsky na infância e Axel Jodorowsky na fase adulta), um protagonista cuja jornada de libertação e individuação só se concretiza quando ele ressignifica a violência sofrida pela imposição de uma masculinidade arquetípica e enxerga de uma nova maneira sua relação com a mãe.
Desde os primeiros momentos, Santa Sangre apresenta a sociedade fragmentada que seu protagonista está inserido. O circo, lugar onde a arte e a marginalidade se encontram, opera como metáfora central. Ali, a graça dos artistas se mistura às sombras que habitam suas vidas precarizadas, revelando o dualismo de um ofício que tanto entretém e enriquece o imaginário, quanto consome de maneira deletéria a vida desses profissionais. O próprio Fênix, nascido e criado nesse ambiente, é moldado por uma realidade brutal: as dificuldades financeiras, a exploração, a violência, a pressão por se tornar um homem através da dor, a menção à traição matrimonial, à mutilação e ao suicídio, somados à condição precária, são reflexos do subtexto social que permeia o filme. Em um mundo capitalista neoliberal e num país subdesenvolvido, Jodorowsky aponta para a impossibilidade do artista existir plenamente, sobrecarregado por um sistema que o reprime.
Essa repressão social reflete diretamente no processo de individuação de Fênix, que carrega um trauma singular. Testemunha da mutilação da mãe e do suicídio do pai, ele cresce num estado de alienação psíquica, incapaz de integrar os aspectos que compõem sua identidade. O protagonista guarda a imagem da sua mãe, Concha (Blanca Guerra), amputada e fanática, como uma figura que exerce poder e controle, mas desprovida de compaixão ou equilíbrio. Por outro lado, a amiga de infância, Alma (Sabrina Dennison), uma artista de circo que o resgata, incorpora a chance do protagonista de reconfigurar a sua relação com as mulheres de sua vida. Fonte de vida, criatividade e redenção, Alma evoca as características perdidas na sombra da psique de Fênix. No entanto, é apenas quando essas figuras se fundem simbolicamente – quando Fênix reconhece e integra o seu arquétipo feminino – que ele consegue romper as amarras de sua repressão.
Jodorowsky utiliza a atmosfera do circo para construir o filme como um grande espetáculo que se passa na mente de Fênix. Para envolver o espectador, o diretor cria uma experiência sensorial única, utilizando cores marcantes, figurinos extravagantes, maquiagens expressivas e performances teatrais. No entanto, essa encenação hipnotizante contrasta com a crueza do trauma do protagonista, refletindo a realidade distorcida de Fênix — um eco de sua infância no circo — enquanto seu sofrimento parece interminável.
A precarização do trabalho artístico no filme também ganha uma dimensão crítica. O circo, que deveria ser um espaço de liberdade criativa, é sufocado por um contexto econômico e social que impõe limites e explora seus artistas. Nesse ambiente, o processo de individuação – de reconhecimento e integração das partes de si mesmo – é dificultado. Para Fênix, a superação do trauma e a libertação de seu controle materno opressor exigem não apenas coragem, mas a aceitação de sua condição como artista e como ser humano dividido, bem como a construção de uma nova maneira de se relacionar com as mulheres, que o passado traumático deturpou.
No desfecho, Jodorowsky apresenta uma libertação que é tanto trágica quanto redentora. A união simbólica de Fênix e Alma permite que o protagonista finalmente enxergue sua essência, libertando-se dos traumas que marcaram sua vida. Essa integração, porém, não é isenta de dor: ela exige um confronto direto com suas sombras, com seus traumas e com o ambiente circense que tanto o formou, quanto aprisionou.
Em Santa Sangre, o diretor não apenas cria um retrato de um homem em busca de sua identidade, mas também denuncia as estruturas que dificultam essa busca. O filme se torna um manifesto sobre o peso de ser artista em um mundo que transforma a arte em mercadoria subvalorizada, e sobre como esse peso impede a plena realização do indivíduo. Ao fim, Santa Sangre é uma ode à resiliência psíquica e à necessidade de encontrar equilíbrio, mesmo nas condições mais adversas.