Cidade dos Sonhos | 2001

Medo e Delírio
Por Matheus Oliveira
No Cinema, são típicas as narrativas com triângulos amorosos contendo finais trágicos e personagens moralmente ambíguos. Geralmente, elas são associadas ao gênero Noir (explora crime, moralidade dúbia e decadência humana). Exemplos não faltam: vão de Pacto de Sangue (1944, Billy Wilder) e Gilda (1946, Charles Vidor) a Crepúsculo dos Deuses (1950, Wilder). Dirigido e escrito por David Lynch, Cidade dos Sonhos também integra esse grupo. Seu enredo gira em torno do romance entre duas atrizes, Betty/Diane, interpretada por Naomi Watts, e Rita/Camila, por Laura Harring, que se desentende com uma delas – a última – largando a companheira para ficar com o cineasta Adam Kesher (Justin Theroux) e se encerra com um crime passional consumado (onde uma manda matar a outra). Embora a descrição da história a torne simplória, remetendo-a à dezenas de premissas parecidas, o conflito amoroso entre o casal só se esclarece a partir dos trinta minutos finais da projeção (não sem uma cota de confusas interpretações), com as duas primeiras horas corridas sendo um quebra-cabeça ambientado no subconsciente de Betty/Diane.
Os filmes citados anteriormente possuem um recurso narrativo em comum: o flashback. Eles se iniciam em uma cena crucial e instigante, com o protagonista arruinado, face ao seu derradeiro destino, mas pronto para realizar um último ato – redentor ou não – antes da morte: explicar ao espectador a situação inteira, a razão profunda do seu malogro, isto é, a verdade nua e crua. Seja Walter Neff, em Pacto de Sangue, prestes a se auto incriminar com um gravador no escritório de seu amigo; ou Joe Gills, em Crepúsculo dos Deuses, morto numa piscina já nos créditos iniciais, contando ao espectador como morreu. Tanto nesses dois filmes, quanto em muitos outros do mesmo gênero, narrar com clareza é a regra, para que o espectador não se desconecte da história. Cidade dos Sonhos, nesse sentido, é uma exceção. Com uma sequência introdutória puramente sensorial, intuitiva, ele não conta com alusões esclarecedoras ou diálogos expositivos, rememorando os erros dos personagens. Em vez disso, são imagens oníricas e abstratas que regem seu mistério inicial: um cenário com fundo lilás é preenchido por casais que dançam foxtrote sobreposto pela figura soturnamente iluminada de Betty/Diane – é um carnaval de estímulos visuais que apenas sugere uma atmosfera falseada (“é tudo uma ilusão”). Somente através da imagem, Diane narra seus flashbacks enquanto inerte balbucia delírios. Em Cidade dos Sonhos, não há narrações verbais como nas clássicas obras mencionadas de Billy Wilder, somente material bruto e indecifrável de um subconsciente imerso em culpa.
A música, presente na cena introdutória, possui uma dissonância incômoda e intui algo oculto a ser revelado a longo prazo: a frustração de Diane Selwyn em ter fracassado como estrela hollywoodiana é reprimida pelos floreios imaginativos do seu sonho. Este, a transforma na magistral Betty, sobrinha da prestigiada tia Ruth, assim contradizendo a dura verdade: a parente morreu e a sobrinha é uma atriz medíocre (na festa final, ninguém dá a mínima para o que ela fala). Sucede a abertura enigmática, com uma cena filmada em um quarto escuro – Diane dorme nele (um travesseiro se vê, uma respiração se ouve, uma mente divaga). Por se tratar de um sonho, o decorrer das horas contará com devaneios, misto de situações exageradas (o esquisito casal de idosos que acompanha Betty no vôo) e fixações aleatórias preenchidas por detalhes banais (o cowboy, o café ruim). O sonho de Diane implica uma contradição: ao passo que a repele do fardo da vida (nada de ruim ocorre perto dela, as pessoas são cordiais, inclusive Coco), traz junto o que deveria esconder: a culpa (os policiais do início, investigando o acidente de carro, simbolizando o peso na consciência). Em certo momento, perto da conclusão do filme, reaparece, em fusão com o rosto de Diane, o mendigo dos fundos do restaurante Winkie’s: é a figura encarnada da autodestruição, o elemento onírico mais temido por ela (“eu espero nunca mais ver aquela figura”). Segundo o diretor, no livro Lynch on Lynch, “o medo é uma coisa que está sempre lá, mas é algo que você não vê diretamente”. A criatura dos fundos é a materialização desse medo, alimentado pela curiosidade do homem assustado (interpretado por Bonnie Aarons) em ver se está realmente à espreita.
Mais do que um neo-Noir que transita pelo surrealismo (reinventa o gênero ao fazer os personagens “vagarem” pelo limite do real e irreal, da vigília e do sonho), Cidade dos Sonhos subverte temas como a atuação e as personas, explorando a natureza da identidade e da performance no contexto de Hollywood (o nome Rita é retirado do cartaz do filme Gilda: personagem – Rita – se apropria da identidade de uma atriz – Hayworth) . O sonho de Diane Selwyn infere uma dualidade simbólica: Betty é quem ela queria ser, seu almejo irrealizado. Ao mesmo tempo, em um contexto metalinguístico, Diane/Betty intui o universal dualismo atriz/personagem, assim como Rita/Camila também o faz (“vai ser como nos filmes, fingiremos ser outra pessoa”).

O romance entre as duas – ou o triste desfecho dele – enriquece a dinâmica inventiva do longa: Rita como o conceito de Narciso invocado através de Diane, que projeta a sua própria imagem humilhada numa versão irreal da ex-namorada deslumbrante, mas mansa e fragilizada (sofrendo de amnésia), que, por sua vez, é a própria Diane acuada. Somente existe a “perfeitinha” Betty, com fala polida e roupa asseada, porque paira, por detrás de sua beleza artificializada, um feroz ressentimento por ter sido trocada por Adam Kesher – nem o cineasta escapa de sua ferocidade: no sonho, ele é traído pela esposa, tem o cartão cancelado e fica impossibilitado de escolher a atriz para o seu filme – ou “ex-filme” (“ele não é mais seu”, diz um dos mafiosos). Diane, em seu sonho, para se autodefender, projeta uma Rita dependente de si, ao passo que se reconstrói como uma talentosa mas frágil nepobaby (sobrinha da tia Ruth): todos a adoram na audição – exceto talvez o diretor Bob Brooker, que, absorto, ao tecer uma crítica morna à atriz (“um pouco forçada, talvez, mas ainda assim humanista”), invade com uma fagulha da realidade a crosta fina do sonho: expõe a vida real de Diane (na festa final, ela menciona que Bob a rejeitou para um papel). E a tendência é mesmo de sucessivas invasões a esse mundo frágil e adormecido do sonho, mas vivo com suas dinâmicas e lógicas únicas – tal como o mundo da criação artística: o artifício da amnésia de Rita equivale ao consecutivo avanço narrativo do filme em direção à sua derradeira resolução (“algo horrível está acontecendo”, brada a vidente Louise). O avanço dramático intuindo uma revelação, o ápice de todo um acúmulo emocional. O desfecho se encaminha para uma fusão Betty/Rita (as duas idênticas, ambas loiras), com elas se revelando apaixonadas uma pela outra, mas, ao mesmo tempo, isso representando o momento mais solitário de Diane: ela se apega à ideia de ter encontrado uma alma gêmea; quando, na verdade, se apaixona por sua própria imagem fabricada de atriz prodígio e sortuda no amor – a atuação da atuação.
Vítima da femme fatale Camila Rhodes (quando Cidade dos Sonhos foi lançado, a imprensa descrevia a atriz Laura Harring assim), Diane parte de um extremo a outro quando desperta: ao lembrar da humilhação na festa (o anúncio de casamento de Adam Kesher) no alto das colinas de Hollywood, através da estrada Mulholland Drive (nome original do filme), transforma Camila na pior das megeras.
Como o ponto de vista do filme situa o espectador no tempestuoso gênio de uma mulher traída e humilhada, o olhar da atriz Laura Harring, antes de uma pessoa dócil e fragilizada, adota de repente os “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada” (Dom Casmurro). Uma pergunta que fica: será que Camila chamou sua ex-namorada para a festa de propósito, mesmo ciente de que ela ficaria magoada com o pedido de casamento de outro? É preciso considerar que, à medida que o longa se aproxima do desfecho, a mente da protagonista colapsa, de modo que sua visão pode estar agravando uma realidade não tão terrível assim. De qualquer forma, isso não suaviza o caráter trágico da jornada de Diane Selwyn, que, ao subir as escadarias que a levam à terrível festa, alude a uma subida metafórica: a tentativa de uma pessoa comum de ascender ao estrelismo hollywoodiano, possível apenas para poucos (ecoa a carreira de David Lynch fora dos holofotes, um diretor crítico do grande sistema).

Mas, se por um lado, Diane fracassou em sua empreitada, pelo menos Naomi Watts, sua intérprete, a compensou com vários sucessos anos depois. Cidade dos Sonhos abriu portas para ela: atuando em 21 Gramas (2003, Iñárritu), foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante; em seguida, teve enorme repercussão internacional ao estrelar o épico de ação King Kong (2005, Peter Jackson). Já a atriz Laura Harring (filha de imigrantes mexicanos, ex-Miss EUA), que fez a vedete de sucesso Camila Rhodes, não teve muita visibilidade pós-Cidade dos Sonhos: continuou trabalhando, mas em papéis secundários e em produções de menor orçamento, como em Um Ato de Coragem (2002), O Justiceiro (2004) e Império dos Sonhos (2006), no qual teve breve aparição no último longa-metragem de Lynch. Talvez, no fundo do coração de cada espectador, Diane Selwyn, a seu modo, tenha triunfado (o último plano do longa estampa seu rosto e o de Camila no céu reluzente de Los Angeles).