Trilha Sonora para um Golpe de Estado | 2024
Uma cortina de fumaça musical que mascara intenções, mas não cala a enorme força combativa do jazz
Sob os graves sopros de saxofone e as insistentes e frenéticas notas de Jazz, o documentário Trilha Sonora para um Golpe de Estado, dirigido pelo cineasta belga Johan Grimonprez e indicado ao Oscar 2025 de Melhor Documentário, trata de elucidar a conexão escusa dos grandes artistas americanos de jazz, ritmo nascido em Nova Orleans, nos Estados Unidos, enviados ao Congo durante o período colonial belga, com ocultos interesses políticos e financeiros. Isso em um período de luta pela descolonização, revirando as tensões da Guerra Fria, o que levou os músicos Abbey Lincoln e Max Roach a invadirem o Conselho de Segurança da ONU em protesto contra o assassinato de Patrice Lumumba — político que liderou a independência da República Democrática do Congo.
O filme tem uma abordagem não linear, mas também traça uma timeline que mostra a perseguição política à Lumumba a partir da conquista da independência Congolesa. O Congo era uma fonte vital de recursos minerais, incluindo o urânio, matéria-prima cobiçada pelos rivais mundiais, Estados Unidos e União Soviética, que buscavam acesso a fontes do metal, crucial para andamento do Projeto Manhattan, programa estadunidense que desenvolveu as primeiras bombas atômicas, que atingiram Hiroshima e Nagasaki.
Nesse cenário, o diretor mostra como a música se tornou ferramenta estratégica, colocando nomes como o de Louis Armstrong como bode expiatório de um sujo esquema político e exploratório, além de outros artistas populares serem guiados a realizar concertos que serviam como “cortina de fumaça” para o golpe de estado da CIA no país africano.
Com um cuidado na edição que parece propositalmente inspirada nos métodos da escola soviética de montagem, Trilha Sonora para um Golpe de Estado coloca muitas questões em perspectiva, nos fazendo refletir sobre imagens de arquivo que expõem inflamadas discussões políticas, como as da luta de países africanos por inclusão na ONU, com imagens da explosão da bomba atômica, assim como faz recortes que chamam atenção para o que se fazia artisticamente na época, a influência do MoMA (Museum of Modern Art) na reflexão política, a arte de Magritte com o surrealismo belga e seus chapéus que remetem à capacetes de Guerra.
Como um artista que gostava de provocar, mostrando que o mundo nem sempre é o que parece ser, Magritte serve para ilustrar como se tornou desconfortável a posição dos músicos de jazz, todos afro descendentes, após suas passagens pela África durante aquele período. Sob intenções camufladas, quase invisíveis. “Quando um peixe chora na água, é possível ver?”
A obra traz depoimentos de grandes nomes como Malcolm X, Nina Simone, Thelonious Monk, John Coltrane e Louis Armstrong. “Usamos a música como uma arma contra a desumanidade do homem contra o homem”. Enquanto os artistas cantavam a dor da discriminação racial, da humilhação e do aprisionamento de países colonizadores, como a Bélgica foi para o Congo, as movimentações em direção à independência, e ao consequente golpe, vinham aos poucos.
Ainda entorpecendo a tela com muito jazz, Trilha Sonora para um Golpe de Estado termina nos atravessando com os berros de Abbey Lincoln, especialmente inseridos na montagem (um dos pontos mais brilhantes e incômodos do filme) como ferramenta narrativa e emocional, usando o clássico efeito kuleshov para criar significados mais profundos, tornando aguda a percepção do sofrimento causado pelo assassinato de Lumumba, das letras inspiradas de Armstrong (“What Did I Do To Be So Black And Blue?”), das notas inquietas de Coltrane, que comemoram conquistas e choram as dores de tanta gente, dos sérios depoimentos e da potente voz de Nina Simone.