O Último Azul | 2025

O cinema brasileiro que experimentamos hoje vive o fenômeno curioso da obsessão popular, em razão do fenômeno da enorme repercussão e indicações ao Oscar de Ainda Estou Aqui. Ganhando o mundo e se fazendo presente nas premiações desde o Festival de Veneza do ano passado, o filme colocou a produção cinematográfica e os festivais em um radar que ultrapassa a bolha da cinefilia, estimulando torcidas e rivalidades tal como o futebol. Nos últimos anos, nossos filmes estiveram presentes em todos os principais festivais internacionais, ocupando lugares de destaque nas competições principais. O Último Azul, do diretor pernambucano Gabriel Mascaro, segue essa tendência na 75ª Berlinale, não só integrando a mostra competitiva, como também um dos que melhor foi recebido pela crítica. Uma obra enigmática, tão doce quanto angustiante, tão humana quanto mística, que aborda um Brasil que não queremos através do realismo mágico, mas que é tão palpável e tão particularmente brasileiro que não soa distante – e isso é aterrorizante.
Esse Brasil, amargo e distópico, ganha otimismo e rejuvenesce com Tereza (Denise Weinberg), uma mulher de 75 anos que é compelida a aderir a um programa governamental de aposentadoria compulsória de pessoas idosas, que os isola em uma colônia onde passam o restante de suas vidas, possibilitando, assim, que seus filhos possam utilizar o tempo que demandariam cuidando dos pais, para continuar produzindo em prol do desenvolvimento do país. Nesse contexto, com a vinda da idade, os filhos automaticamente recebem a guarda de seus pais. A polícia cidadã exerce o controle do programa, fazendo uso do veículo “cata-velho” para devolver os idosos fugitivos aos seus guardiões. Vivendo numa cidade ribeirinha amazônica, Tereza recusa submeter-se e inicia uma jornada em busca de viver o que ainda não viveu e realizar seus sonhos..
O Último Azul, mais do que uma abordagem social que vai fazer questionar o etarismo e o tratamento uniforme e não individualizado das pessoas idosas no Brasil, é um road movie amazônico de autodescoberta e empoderamento feminino, que parte de uma conjuntura política aprisionadora para nos presentear uma heroína improvável e não convencional aos cinemas. Sua insubmissão vai operar para engrandecer e libertar essa personagem gradativamente, e com ela, se eleva a potência e a misticidade do filme. Tereza criou os filhos só ante a ausência da figura paterna, trabalhou e se desdobrou por toda sua vida para proporcionar dignidade à sua família, abdicando de sonhos e desejos próprios em favor do sistema produtivo que determina modos de vida – algo tipicamente brasileiro, diga-se. Dotada de saúde, no momento em que gozaria de algum lazer em sua vida, se vê amarrada, novamente pelo capital, aqui, representado por um governo com traços de autoritarismo, o que nos faz facilmente remeter à teocracia de Divino Amor, obra pretérita do diretor, e refletir sobre o interlace desses dois mundos.
É importante que se esclareça que, em O Último Azul, o místico não é o exótico amazônico e nem reflete qualquer estereótipo nesse sentido. Mascaro mostra-se cuidadoso para não permitir que a exuberância natural do espaço tome conta da tela, permitindo que a humanidade da protagonista e das pessoas que ela vai encontrando em sua jornada sejam o coração de sua obra. O entorno e o ambiente são fatores enriquecedores de narrativa, não sua essência. Os rios que Tereza precisa atravessar em busca de seu sonho são tão sinuosos quanto os desafios que ela precisa enfrentar, e, navegando por eles, vai contando com a sorte, com aquilo que seu dinheiro pode comprar e com pessoas dispostas a lhe prestar auxílio.
Os espaços que o filme abre para os elementos místicos e culturais que empoderam Tereza funcionam como uma espécie de pausas meditativas de sua fuga. São pausas a princípio angustiantes, pois impedem que ela siga em frente, mas essenciais para que ela realize sua transfiguração pessoal. O barqueiro Cadu (Rodrigo Santoro) vai transportá-la ilegalmente, e durante o caminho, eles vão encontrar o caramujo da barba-azul, cuja secreção possui poder alucinógeno e capacidade de abrir mentes e mostrar o futuro. O contato com o animal suspende a viagem, mas é imprescindível para que a conexão entre os personagens se estabeleça e Tereza precise lidar com situações inéditas em sua vida. O entorpecimento trazido pela presença desse misticismo, direto como o causado pelo caramujo, ou indireto, como o trazido pelo impacto da própria imagem cinematográfica, causada, por exemplo, por monumentos enormes e abandonados em meio à floresta, que são trabalhados por Mascaro como elementos que intrigam e fazem questionar os acontecimentos, sem que isso pese na trama de forma a invisibilizar sua humanidade.
O elemento humano é chave para o crescimento da personagem. Ludemir (Adanilo) é quem vai prometer à protagonista o conserto de um ultraleve, já que andar de avião, seu sonho, não é uma possibilidade, e a convivência dos dois vai abrindo o filme para culturas e práticas muito brasileiras, como as apostas no jogo do bicho. Em Roberta (Miriam Socarras), a protagonista vai encontrar uma possibilidade de nova vida, um alento, o ápice do vigor que ela vai descobrindo ainda possuir. Há uma troca de calor entre Tereza e todos esses personagens que perpassam, em crescimento e aprendizado mútuos.
O Último Azul é autolibertação, e porque não, empoderamento feminino de corpos sub representados tanto artística como politicamente, corpos que não se veem nas telas do cinema com protagonismo e complexidade. É fonte de cultura brasileira e representação de um povo que se ajuda e se salva num contexto político assustador. Aguardemos, ansiosos e cheios de expectativa, o caminho que ele vai trilhar a partir da Berlinale 2025 (e da possibilidade de premiação que, aqui em Berlim, está muito palpável).