Hot Milk | 2025

Hot Milk | 2025

Nada mais simbólico e hábil a representar, imageticamente, as prisões interiores do ser humano do que a própria cadeira de rodas. A pessoa cuja locomoção torna-se adstrita a tal objeto perde, dentre tantas outras coisas, principalmente, sua liberdade. Depender de um instrumento ou de outras pessoas para  tarefas básicas e rotineiras é, de fato, um grande fator de aprisionamento de corpos. Hot Milk, dirigido pela britânica Rebecca Lenkiewicz e integrante da mostra Competitiva da 75ª Berlinale, vai lidar com o confinamento feminino em sua forma literal, através de Rose (Fiona Shaw) e de forma indireta, por sua filha, Sofia (Emma Mackey), que vai encontrar um contraponto e um incentivo à autoreflexão diante da viajante Ingrid (Vicky Krieps).

Essas três mulheres vão se encontrar em Almería, na Espanha, durante um verão ensolarado e escaldante. Rose (Shaw) é portadora de uma doença misteriosa e sem diagnóstico preciso, que a limita à cadeira de rodas, mas que lhe permite dar alguns passos em situações específicas. Ela e sua filha procuram, na cidade espanhola, tratamento alternativo na clínica mantida por Gómez (Vincent Perez), um profissional que se propõe a encontrar a raiz do problema de Rose para traçar sua cura – e tal origem parece, ao que tudo indica, ser traumática. O tempo de Sofia, jovem e cheia de vida, é ocupado pelos cuidados demandados (física e psicologicamente) por sua mãe, uma figura exigente que parece oportunamente não enxergar o espaço que ocupa na vida da filha. Numa tarde na praia, Sofia encontra Ingrid, como uma princesa encantada de espírito livre – linda, montada num cavalo. As duas vão firmar uma conexão imediata e iniciar um relacionamento estranho, movido à atração, espelhamentos, impulsos e provocações na mesma medida.

Tudo é muito promissor em Hot Milk. A oposição entre a prisão e a liberdade representada por essas duas jovens mulheres que, como ímã, se atraem magneticamente, e o amadurecimento que Sofia vai extraindo dessa relação, vai fazê-la questionar seu papel como aprisionada e como provocadora das limitações da mãe, não no sentido de ser responsável, mas como propiciadora de uma zona de conforto que impede a cura e que permite que Rose a controle. O calor extremo e a luz solar vão, de algum modo, ditar o ritmo do filme, colocando as personagens num estado de entorpecimento e inércia – por mais que elas estejam viajando em busca de algo, nada parece avançar – o que, não necessariamente, será bom, já que o longa, de fato, não caminha para muitos lugares e não se mostra interessante e instigador o suficiente para nos manter na suspensão que quer que fiquemos.

A própria relação entre Sofia e Ingrid é, até certo ponto, estimulante à narrativa, muito graças à leveza ambígua que Vicky Krieps, como atriz competente que é, transmite à sua personagem. Suas intenções nunca são de todo claras e ela parece apenas mover-se e agir conforme seus próprios desejos. Ora se relaciona intensamente com Sofia, ora aparece nutrindo relações alheias e heterossexuais, o que causa dúvida na jovem em descoberta de sua liberdade, mas também atua como inspiração de um modo de viver possível. No entanto, nem o fascínio sedutor de Krieps será suficiente para emplacar aquilo que, visivelmente, não quer sair do lugar e prefere ocupar uma zona de cansaço – Hot Milk tem 90 minutos intermináveis.

Não há, ainda, muito interesse de Rebecca Lenkiewicz pelas amarras que levaram Rose à sua condição atual. Levanta-se a possibilidade psicológica que a mantém na cadeira de rodas, cogita-se a experimentação de algum tipo de violência passada com o pai de Sofia, e é só. O talento de Fiona Shaw é subaproveitado por uma trama pouco desenvolvida, e ela, ainda, muito o faz como mãe cínica e incontentável, com pouco espaço de desenvolvimento.

“O que você faria se eu andasse?”, questiona Rose à sua filha. A resposta: “Seria feliz.”. Hot Milk todo se resume a este diálogo. O próprio motivo do título fica no enigma, nos fazendo presumir que trata-se daquilo que a enferma beberica como boa britânica, e que representa a mácula de seu passado – que jamais conheceremos. 

Nota:

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