Triângulo da Tristeza | 2022
Nós, seres humanos, somos por natureza animais políticos, já dizia Aristóteles. Vivemos em comunidade para melhor garantir nossa sobrevivência. Criamos formas de organizar a vida, fundamos a cidade, o trabalho, as instituições, o governo. Buscamos sempre maneiras de limitar o movimento caótico da existência impondo formas predeterminadas de comportamento, de interação social. Com esse pretexto construímos a vida como ela é. Chamamos esse evento histórico de moral, são as regras, valores e hábitos que recebemos das gerações passadas. Toda moralidade é também uma relação de poder. O poder gera um excedente que ultrapassa a natureza organizacional da vida para inserir a opressão. As tecnologias opressoras se tornam tão avançadas que operam na invisibilidade, transformam o inconsciente humano, naturalizando a verticalidade das relações, constituindo um sistema reprodutivo onde não mais se pensa sobre os absurdos de tal moralidade. Vestimos as máscaras da etiqueta, do estereótipo, das aparências a qualquer custo. Eis o Triângulo da Tristeza.
Se olharmos pelo menos aos três últimos e mais populares filmes do cineasta sueco Ruben Östlund, notaremos essa premissa. As histórias são localizadas em ambientes e eventos elitistas, são inspirados nessa concepção moralista e em como fazemos de tudo para manter uma imagem imaculada dessa moral. Os absurdos ganham a forma mais irônica pelas mãos do cineasta sueco. Ele cria a evidência de que extrapolamos todas as fronteiras possíveis da vida natural aristotélica em prol do luxo, da ganância, da hipocrisia. Em Força Maior (2014) a classe alta esquia nos Alpes franceses, uma imagem de perfeição que se quebra quando o pai da família se revela egoísta. Em The Square – A Arte da Discórdia (2017), vencedor da Palma de Ouro em Cannes, temos representada a indústria cultural e a relação dos ricos com a Arte.
Triângulo da Tristeza não é diferente e habita esse mesmo plano. Retratando mais uma vez as pessoas do “topo” da pirâmide social, Östlund revela mais uma vez ao espectador a humanidade que se dissolve em seu próprio moralismo. Claramente inspirado em outro cineasta sueco, Roy Andersson, autor de Canções do Segundo Andar (2000), Vocês, Os Vivos (2007) e O Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência (2014), Ruben Östlund, a seu modo, trabalha o humor ácido e a ironia mordaz para denunciar a hipocrisia humana. A semelhança entre os dois cineastas também pode ser vista no estilo de esquete para as cenas, muito mais presente nos filmes de Andersson, que não tem um único núcleo narrativo, mas que se reflete nos vários personagens que acompanhamos em Triângulo da Tristeza, por exemplo. Em ambos, os personagens são inertes, não percebem o absurdo que presenciam e nada fazem para atacá-lo.
O filme que rendeu a Östlund sua segunda Palma de Ouro e três indicações ao Oscar 2023, Triângulo da Tristeza é dividido em três atos. O primeiro capítulo apresenta Yaya (Charlbi Dean) e Carl (Harris Dickinson), casal de modelos que nos levarão até o segundo momento do filme, o iate. O fato de termos um capítulo inteiro para esses dois personagens não fazem deles o centro da história, mas são como condutores do absurdo. Yaya é uma influencer de renome, enquanto Carl parece não ter tanta visibilidade como modelo, ainda mais porque as mulheres são mais valorizadas nessa área, como dizem em certo momento. O casal protagoniza a primeira “esquete”: um jantar após um desfile de Yaya, onde o dilema “quem vai pagar a conta?” assume um papel muito maior do que realmente parecia ser. O fato de Yaya ter mais dinheiro afeta a masculinidade de Carl, que, por sua vez, tem um discurso “feminista” de igualdade no pagamento de contas. Os dois não se entendem e a situação vai se tornando cada vez mais insuportável. Pequenos detalhes deixam tudo mais caótico, como a chuva torrencial e o barulho dos limpadores de para-brisa do taxi. O desfecho da discussão é ainda mais ridículo, com Yaya assumindo sua suposta culpa.
No segundo capítulo, devido a sua popularidade nas redes sociais, Yaya ganha duas estadias em um cruzeiro de luxo, que será o ambiente principal do filme. No iate o casal continua suas discussões absurdas, agora envolvendo uma troca de olhares e cumprimentos entre Yaya e um funcionário do barco. Carl quer marcar seu território como um “macho alfa” e tenta a todo custo manter sua masculinidade intacta, nem que custe o emprego daquele funcionário. Entretanto, a trama dos dois dá lugar a novos personagens que irão contribuir para um caos ainda maior. A máscara da moralidade luxuosa daqueles tripulantes abastados vai aos poucos caindo e dando lugar ao instinto mais animalesco do ser humano. A pseudo-ordem social é substituída por seu próprio absurdo.
Na luxuosa embarcação, as entranhas do homem são (literalmente) expostas. O jantar do capitão, evento de gala em cruzeiros de luxo, acaba se tornando o seu inverso. A imagem de pessoas imaculadas por seu poderio financeiro é levada ao embaraço extremo. A tentativa de se manter no pedestal acaba tornando tudo ainda mais absurdo em uma cena escatológica e hilária. O capitão, vivido pelo único ator de renome no elenco, Woody Harrelson, faz o contrário do que exige sua atribuição. É um beberrão que pouco liga para o barco e seus tripulantes; é um americano comunista em crise com sua posição pouco digna em relação a seus ideais. Östlund constrói aqui o auge do filme, um capítulo extremamente engraçado e incômodo ao espectador, que vê a tela balançando de acordo com a tormenta pela qual a embarcação passa. O ápice da loucura é a discussão entre o capitão comunista e um tripulante russo capitalista, Dimitry (Zlatko Buric), um show da hipocrisia humana em seus discursos.
Quando tudo parecia se acalmar e as máscaras poderiam novamente serem vestidas, o iate naufraga. O capítulo três se passa em uma ilha, onde restam os poucos sobreviventes, entre eles Yaya e Carl, Dimitry e a chefe da equipe de funcionários do cruzeiro, Paula (Vicki Berlin). Agora eles precisam arrumar uma nova forma de organização para sobreviverem na floresta. Nenhum deles parece ter qualquer habilidade para tal tarefa, já que ali na ilha o dinheiro de nada vale. A salvação, ironicamente, vem de uma faxineira do iate, Abigail, atuação magnífica da filipina Dolly De Leon, indicada ao Globo de Ouro, que chega a bordo de um pequeno barco de resgate. Lá os desesperados náufragos encontram água e alguma comida.
Abigail, ao perceber a nova situação em que aquelas pessoas estão submetidas, toma a frente com suas habilidades de caça e sobrevivência. A faxineira que apenas deveria responder “sim, senhor” agora toma consciência da opressão sobre si. Triângulo da Tristeza, então, caminha para seu final, usando dessa matéria-prima moralista e mostrando as vísceras daquilo que nos tornamos enquanto seres humanos. Ruben Östlund faz, mais uma vez, um desenho da podridão humana, uma piada ácida, como quando mostra o capitalista russo com a aparência de Karl Marx.