Entre Mulheres | 2022

Entre Mulheres | 2022

“O que se seguirá é fruto da imaginação fértil das mulheres”

Em 2009, em Manitoba, comunidade menonita situada na Bolívia, um grupo de homens foi preso e posteriormente condenado pelo estupro de 151 mulheres e meninas, entre 03 e 65 anos. O modus operandi era sempre o mesmo: meninas, mulheres e idosas eram dopadas durante o sono e acordavam desprovidas de roupa íntima, sujas de sangue e sêmen. Eram levadas a acreditar que os crimes foram causados por fantasmas e por demônios, ou que eram fruto de suas imaginações. Eram tidas como se amaldiçoadas fossem, forçadas a duvidar de sua própria sanidade.

A escritora Miriam Toews fundamentou seu livro Women Talking nos eventos reais de Manitoba. Através de sua obra, a autora deu voz às mulheres silenciadas pela religião, pelo medo e pela violência física e sexual, concedendo a elas direito de resposta e ação contra os crimes e seus autores. Deu a elas a possibilidade, ainda que imaginativa, de falar. Nas palavras da própria autora, o livro é “uma reação através da ficção”.

As comunidades menonitas existem pelo mundo todo. No Brasil, há colônias nos estados do Paraná e Santa Catarina. De origem europeia e tendo sido fortemente consolidada principalmente na Alemanha, são colônias cristãs evangélicas que rejeitam o mundo moderno e vivem da agricultura, e tem como principal mote de seus modos de vida a religiosidade e a bíblia. A afronta às regras pode ser penalizada com a excomunhão.

Quando mulheres falam, homens escutam e tomam nota. Não contestam e só opinam quando lhes é solicitado. No interior de um celeiro, onde se passa maior parte de Entre Mulheres, de Sarah Polley (de Alias Grace e Histórias que Contamos), reúnem-se gerações e unifica-se a complexidade carregada pelo ser humano feminino que, em que pese oprimido e violentado, precisa decidir nunca somente por si só, mas pela coletividade, inclusive, masculina, presente e futura. A coletividade feminina, aqui, se une com o sentimento mais poderoso, a arma mais combativa contra o patriarcado e a agressão sexual, segura na palma de suas mãos, esperando para ser reencontrada: a sororidade.

“Centenas de vezes. Todas nós.

Eles disseram que estávamos sonhando.

Eles disseram que era Satanás.

Ou fruto de nossa fértil imaginação.”

Trabalhada com um roteiro afiado de diálogos complexos e reflexivos, a obra de Sarah Polley consegue abordar questões universais de natureza filosófica, social, política, educacional, moral e religiosa nesse estrito espaço do celeiro. Tais como as vítimas de Manitoba, as oito mulheres reunidas no armazém são plurais em idade, personalidade e realidade. E são nomeadas: Greta (Sheila McCarthy), Mariche (Jessie Buckley), Mejal (Michelle McLeod), Autje (Kate Hallett), Agata (Judith Ivey), Ona (Rooney Mara), Salome (Claire Foy) e Neitje (Liv McNeil). São distintas em opinião e reatividade. Controladas pelo analfabetismo (a leitura e a escrita é restrita aos homens da colônia), desprovidas de qualquer conhecimento político, buscam na democracia, por elas mesmas elaborada, na fala, na discussão e no entendimento, a solução para o dilema que precisam, para preservação de suas vidas e de suas filhas, votar: não fazer nada, ficar e lutar ou partir?

O que se segue é um espaço aberto, livre e acolhedor para que cada uma das mulheres expressem suas opiniões, seus sentimentos e dores, e reflitam suas questões, individuais e coletivas. Há muita resistência (a personagem de Frances McDormand vem representá-la) e muito medo na tomada de decisões. Há muitas vidas em jogo. São mulheres que carregam e carregaram em seus ventres crianças frutos do estupro. São elas mesmas frutos da brutalidade, e que ainda assim, nutrem por seus filhos um amor fervoroso. Entretanto, do surgimento do conflito e da crise, a partilha da dor e a compreensão coletiva as faz retornar ao amparo de uma para todas, de todas para uma. Coletividade é uma palavra por elas rememorada o tempo todo. Há julgamentos, há muita raiva, há desejo por vingança e sangue, mas também há perdão e amor.

O único homem adulto presente no longa é August (Ben Whishaw), professor da colônia responsável pela alfabetização dos meninos. O personagem de August sabe bem o seu lugar ali e não o ultrapassa. Sua missão é suprir o analfabetismo das mulheres, tomando notas, escrevendo os prós e contras de cada uma das opções votadas, registrando a história sendo feita.

Sobre homens, origem de toda violência que se perpetua, o sentido de coletividade daquelas mulheres também a eles se estende. Elas são vítimas, suas dores não são somente físicas, e são irreparáveis. Mas elas também são mães, e mães de meninos, crianças e adolescentes, possíveis futuros estupradores. Suas ações e decisões vão influenciá-los diretamente. É belíssima e dolorosa a reflexão educacional e moral que a diretora nos permite ter quando cabe às mulheres decidir o futuro também de seus filhos homens. Como medir a consciência infantil masculina a respeito da violência? Como saber se um menino de 15 anos já está inserido na cultura de estupro? É possível educá-los para que não se tornem novos criminosos?

Os dilemas da fé constituem uma constante. Tratando-se de uma comunidade reunida para fim religioso, as mulheres ali são fervorosas e lutam para encontrar uma saída que não lhes seja penosa no purgatório. Buscam, desesperadamente, pelo perdão divino por suas decisões. A fé que as move é forte, e é tocante como transformam essa mesma fé e a religião que lhes foi ensinada (e que também lhes aprisiona) em uma espécie de religião própria, baseada no amor.

Toda a composição de Sarah Polley, a dinâmica de sua direção, tornam possível a imersão profunda do espectador na dor das personagens, não tornando a dependência do diálogo cansativa. A diretora insere pausas (flashbacks pontuais, uma criança machucada, um acidente doméstico, uma crise de ansiedade) fundamentais que permitem respiro, e que também bem representam a rotina dessas mulheres, demandadas a todo momento a voltar-se para o outro. A fotografia de contrastes, a abertura de portas e janelas que permitem a luminosidade, remetem à liberdade que lhes é possível alcançar, e a lindíssima trilha sonora de Hildur Guðnadóttir emana força que transita entre o sombrio e o esperançoso.

Entre Mulheres, obra primorosa, foi relegada a meras duas indicações ao Oscar 2023 (melhor filme e melhor roteiro adaptado), muito embora tenha uma direção muito acurada e sensível, uma trilha sonora impecável (trabalho da compositora oscarizada Hildur Guðnadóttir), uma fotografia e figurino muito apurados (e elementares para a narrativa), além de um elenco absolutamente forte. O filme foi o único dirigido por mulher indicado ao Oscar 2023 na categoria principal, num ano em que tivemos Aftersun, de Charlotte Wells (uma indicação ao Oscar para Paul Mescal, como Melhor Ator) e A Mulher Rei, de Gina Prince-Bythewood (esse sem nenhuma indicação, nem mesmo técnica), apenas para citar alguns exemplos. Claire Denis dirigiu dois belíssimos filmes em 2022 (Com Amor e Fúria e Stars at Noon) e sequer foi lembrada pelas premiações americanas. Grande mal dessa temporada de premiações, optou-se, conscientemente, por ignorar muitas obras dirigidas por mulheres. Chegar-se-á o momento em que tais premiações enfraquecerão (ainda mais) a ponto de implorar às mulheres que retornem para resolver a bagunça das colônias do patriarcado.

Assistido via cabine de imprensa a convite da Universal Pictures e da CDN.

Nota:

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