Nada de Novo no Front | 2022

Nada de Novo no Front | 2022

A temática da guerra sempre esteve em pauta no mundo. Não parece ter havido um período suficientemente longo para se afirmar que a humanidade vive em paz. A competitividade, “que tem a guerra como norma”, parece fazer parte do ser humano. Alguém que, como eu, nasceu no início dos anos noventa, pode dizer que nunca presenciou anos tranquilos de paz global. A quantidade de guerras que presenciamos, de 1990 até a atualidade, com certeza superam os dedos das mãos. Para ficarmos em alguns poucos exemplos, temos a guerra do golfo; guerra da Chechênia; guerra da Bósnia, Guerra do Iraque, Guerra da Síria, Guerra do Afeganistão, Guerra do Congo, entre inúmeras outras. É no contexto da invasão russa ao território ucraniano (completou um ano no último dia catorze de fevereiro de 2023) que Edward Berger lança “Nada de novo no Front”, remake do homônimo filme alemão dirigido por Lewis Milestone na década de 1930, tendo ambos se baseado no livro (também de mesmo nome) escrito por Erich Maria Remarque, lançado em 1929 e que tornou-se, muito rapidamente, um verdadeiro fenômeno de vendas na Europa. Esta obra literária ganhou sua primeira edição no Brasil em 1951.

Este remake  dirigido por Edward Berger (que utilizou a língua alemã, língua original do livro que o inspirou) é distribuído mundialmente pela Netflix e tem acumulado inúmeras premiações em importantes eventos ao redor do mundo. No Oscar, consta como indicado em inúmeras categorias, dentre as quais: melhor filme, melhor filme estrangeiro, melhor fotografia, melhor trilha sonora, melhor design de produção e melhor roteiro adaptado.

Do ponto de vista das questões que tendem a se chamar de “técnicas”, a qualidade da obra é dificilmente refutada. A qualidade da fotografia, dos efeitos visuais, do design de som e da trilha sonora são fatores que conferem o peso que a guerra, enquanto temática, requer, impactando fortemente o espectador (mesmo que a primeira vista ele possa não se dar conta disso). A trilha sonora de Volker Bertelman merece um destaque à parte, trazendo intensidade e criando uma tensão crucial para o bom funcionamento de determinadas cenas do filme.

Um “quesito” que parece não estar na mesma toada do filme é o de atuação, o que explica, em parte, os atores e atrizes do longa-metragem não estarem nas listas de nominados/ganhadores nos principais festivais e premiações do mundo do cinema, em que pese as atuações competentes de Félix Kammerer e Albrecht Schuch. O destaque negativo fica por conta de Daniel Brühl, com uma atuação insípida e absolutamente desfavorecida por seu personagem cuja presença não parece encontrar lugar na trama. 

 O nome do filme já traz algo de anedótico: aqui não há nada de novo.

A comparação que, imagino, seja feita pela maior parte do público é com “1917”, de Sam Mendes, que também ganhou vários prêmios e foi indicado ao Oscar. Pensando em ambos, percebo que filmes de guerra são ótimas “opções” para quem tem especial interesse em ser irretocável tecnicamente, mas que não possui ideias muito originais em termos de roteiro e direção.

Aqui, Berger aborda de forma ortodoxa a temática, fazendo uso de recursos que não são originais, mas cuja execução é reconhecidamente competente. Os terrores da guerra, mesmo sendo retratados de diversas formas e durante muitos anos no cinema, possuem o inextricável condão de comover, ainda mais quando se trata da Primeira Guerra Mundial, disputada nas trincheiras, em um cenário cuja escassez material salta aos olhos: falta de higiene, falta de comida, falta de estrutura física.

Utilizando planos abertos, que muitas vezes permitem o espectador assistir a inúmeras outras ações que ocorrem em segundo plano, para além dos protagonistas, Berger recorre a assuntos que são abordados na maior parte das obras que versam sobre guerras, mas, como já dito, nem por isso deixam de comover e promover importantes reflexões.

Há um profundo interesse em se evidenciar a diferença na participação da guerra entre os que comandam e os que obedecem. Enquanto os soldados participam de uma dinâmica permeada por barulhos de bombas, tiros, falta de alimentação adequada, falta de condições de higiene, enfim, muito sofrimento de toda ordem, os Comandantes dos exércitos participam de banquetes, vestem-se com trajes imponentes e discutem sobre a guerra em confortáveis salas e gabinetes. Os generais, como se jogassem xadrez, tratam a guerra de forma asséptica e excessivamente egoica, afinal, o que importa são suas reputações e não a vida dos seus miseráveis soldados nas trincheiras. 

Quem quer a continuação da guerra, não vai às trincheiras.

Há um nítido distanciamento entre as “classes”.  Há uma clara falta de interesse dos mais poderosos e bem remunerados em relação àqueles que, efetivamente, lutam, sujam suas botas, dão tiros e correm o risco de morte a todo instante. Em linhas gerais, na guerra, há reprodução do que ocorre na sociedade como um todo: os mais poderosos atuam para permanecerem em sua situação de privilégio e se valem do trabalho daqueles que são ”ensinados pelo mundo” a apenas obedecer e fazer o trabalho pesado e mal remunerado, uma vez que “o trabalho duro compensa”.

Valendo-se da lição do imprescindível escritor soviético Pyotr Kropotkin, tem-se que a prisão só é possível porque conta com a atuação de um carcereiro que ganha um salário miserável; se os próprios juízes tivessem que vigiar aqueles que ordenam serem aprisionados e executarem aqueles a quem comina a pena capital, certamente estes próprios magistrados considerariam irracionais as medidas por si mesmos tomadas.

 A guerra ainda ocorreria dos moldes que ocorreu e duraria o tempo que durou se os generais tivessem que ir para as trincheiras? 

Uma das cenas mais marcantes do longa-metragem ocorre quando os soldados alemães são informados da rendição do país e a assinatura de um armistício. Ainda que tenham sido informados da rendição do seu país, o que significaria a perda da guerra e a insatisfação dos seus superiores hierárquicos, os soldados comemoram vigorosamente, por vislumbrarem o fim daquele terror. 

A despeito de terem lutado por tanto tempo para conseguiram pouquíssimos metros nas trincheiras, a despeito de terem perdido amigos queridos, a despeito de terem passado por traumas indizíveis, o que importava, ali, era o fim do conflito, pois uma coisa estava clara: na guerra não há vencedores. 

A comemoração dos soldados com a rendição do seu próprio exército tem algo de muito simbólico, tornando-se um dos pontos altos do filme de Edward Berger.

A exploração da visão absolutamente diferente entre comandantes e soldados acerca da guerra é trazida diversas vezes no filme: enquanto que comandantes reclamam de o quitute não ter sido feito naquele dia, vários soldados se refestelam comendo um ganso furtado de um pequeno criador francês; enquanto o general alimenta seu cão com um pedaço suculento de carne, os soldados nas trincheiras se deliciam com pão velho e duro, em uma dura concorrência com os ratos sobre quem vai comer primeiro.

Ao fim do longa-metragem, Berger acerta em optar por focar seus esforços em evidenciar o grande vazio de propósito na guerra. Inicialmente atraídos a guerrear em meio a discursos patrióticos, não demora para que, entremeados em lama e sangue, os soldados vejam o terror e a falta de sentido daquela batalha: não se sabe para que luta, por quem luta; o sobreviver depende de matar um igual que, por desígnios do destino, está no outro lado da trincheira. 

No que concerne às funções atribuídas às penas, no Direito Penal, o grande filósofo alemão Immanuel Kant afirmava que suas finalidades eram tão somente retributivas: uma reação estatal a uma ação do indivíduo. Para ele, não haveria de se perseguir fins utilitários às penas. Utilizando de uma a alegoria para melhor explicar seu pensamento, afirmara que, ainda que uma sociedade, em uma ilha deserta, decidisse separar-se e espalhar-se pelo mundo, antes, o último assassino condenado deveria ser executado. 

Edward Berger parece se valer da alegoria criada por Kant (também alemão): mesmo com o armísticio assinado e o fim da guerra chegando há pouquíssimos minutos, batalhas que não mudariam os rumos da primeira guerra continuavam sendo travadas até o “apito final”. O diretor alemão, já no terço final do filme, é muito competente em fazer saltar aos olhos do público o grau de irracionalidade que há nas guerras e a engendrar reflexão acerca da quantidade de vidas perdidas, tornando perene sua intenção de provocar uma reflexão na forma de como vemos o que, infelizmente, já nos parece naturalizado neste mundo em que a competição é regra e os laços de solidariedade são escassos.

Nota:

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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