Criaturas do Senhor | 2023
A A24 parece estar dedicada a dar voz a produções feitas por mulheres em muitas vertentes, mais um de seus contrapontos aos grandes estúdios, que ainda parecem compreender de forma muito lenta a presença e o protagonismo feminino nos cinemas, dentro e fora das telas. Criaturas do Senhor é uma parceria acertada de codireção entre Saela Davis e Anna Rose Holmer. O filme irlandês, protagonizado por Emily Watson e pelo novo queridinho do cinema independente, Paul Mescal, nos conta a história de Aileen O’Hara (Watson), uma mulher trabalhadora que vive com sua família numa ilha de pescadores, que vê o sentimento de alívio pela volta de seu filho Brian (Mescal) se transformar em agonia e questionamento moral quando um crime é denunciado na comunidade.
O filme aposta na tendência mais apreensiva, densa e desoladora da A24. De início, nos arremessa em meio às águas revoltas do mar ao som de um grito abafado de um afogamento. O som da ambulância na sequência de acontecimentos já nos revela a tragédia. O vilarejo que sobrevive da pesca e do cultivo de ostras é rodeado por uma tradição que mais soa como um mau-agouro: nenhum dos pescadores sabe nadar, porque naquele espaço possuir esse conhecimento é motivo de azar.
O cinza azulado que permeia a ilha, a chuva constante e a atmosfera inquietante fornecida pela trilha sonora deixam o espectador num estágio de constante desconforto. Mesmo os momentos de aparente tranquilidade são tomados pelo desassossego, e a direção de Davis e Holmer é bastante eficaz ao traduzir a constância desse efeito. Tal como a imprevisibilidade do mar e das marés que age como fio condutor da narrativa e dos acontecimentos, há um enigma e uma incerteza em cada personagem que nos faz temer por um acontecimento ruim a todo instante. A súbita chegada do personagem de Paul Mescal em meio a um velório nos fornece a ideia de que a presença de Brian ali talvez não seja desejada, exceto por sua mãe.
A construção paciente da relação mãe e filho é fundamental para o dilema materno que Aileen enfrentará. Brian, cujo passado nos é revelado aos poucos, persona non grata para o pai, o avô e a irmã, suga o amor incondicional de sua mãe ao ser por ela alimentado, ao deixar roupas pela casa para que ela as guarde após o trabalho. O lado carinhoso e amável do filho parece ser visto apenas por sua mãe, que aceita de forma passiva essa exploração.
Aliás, é bastante interessante ver Paul Mescal em um papel tão diverso de seu Calum em Aftersun, o que evidencia a potência e a adaptabilidade do ator. O que há de humanidade em Calum, em Brian há uma indiferença e um cinismo capazes de confundir tanto sua mãe como o espectador.
O crime denunciado na comunidade faz Aileen questionar seu papel materno em contraposição à sua existência como mulher. O galpão em que trabalha coordenando uma equipe de mulheres na limpeza e seleção de peixes e frutos do mar faz construir uma rede de apoio e compreensão entre elas, unidas de forma solidária na labuta, nas pausas para um cigarro, na vida pessoal. Quando Aileen é relegada e se isola das demais mulheres no momento do cigarro coletivo, vislumbramos o rompimento do grupo e desse elo. A causa: o homem. A rede de apoio masculina se fortalece quando consegue romper a feminina, e se mostra capaz de acobertar e dar suporte a um criminoso, por mais horrendo que seja seu crime.
Com Os Banshees de Inisherin ainda ecoando, é inevitável não pensar em como o litoral irlandês é propício para que histórias se desenrolem com um certo ar lúgubre, circundadas com tradições, lendas e maus-presságios. A impactante solução de Aileen frente ao seu próprio questionamento moral e ao seu amor de mãe é trabalhada de certa maneira com frieza e sem apelo dramático pelas diretoras, que são fiéis do início ao fim à atmosfera do filme e às características de seus personagens. O instinto de proteção materno é quase que automático, e seu desconforto transborda de forma sutil perante os acontecimentos. Possivelmente a escolha de Aileen ressoará no espectador de forma perturbadora e reflexiva, como um alívio que não gostaríamos de sentir.
Criaturas do Senhor, assistido por nós via cabine de imprensa a convite da Sinny Assessoria, estreará nos cinemas brasileiros em 13 de abril.
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