Liberdade em Chamas | 28º Festival É Tudo Verdade

Liberdade em Chamas | 28º Festival É Tudo Verdade

Em 2014, na Ucrânia, uma onda de manifestações que ficaram conhecidas como “Euromaidan”, ou “Primavera Ucraniana”, levaram milhares de pessoas às ruas para exigir, explanando de forma muito sucinta, a integração europeia do país e a abertura comercial para além da Rússia. Esse movimento foi repreendido de forma violenta pela polícia, e teve como uma de suas consequências a fuga do presidente Viktor Yanukovych para a Rússia.

O documentário Inverno em Chamas: A Luta pela Liberdade da Ucrânia, indicado ao Oscar 2016 e disponível no catálogo da Netflix, dirigido por Evgeny Afineevsky, tratou de mostrar ao mundo essa onda de protestos e a forma como se iniciaram pacificamente até dura inflamada coibição.

Neste ano, o diretor apresenta um novo trabalho, o documentário Liberdade em Chamas, exibido na coletiva de imprensa do 28º É Tudo Verdade. Atuando como complemento do primeiro e explorando a transformação da revolução popular ocorrida na praça Maidan, de Kiev, em uma das causas da Guerra da Ucrânia, conflito que completou 01 ano em fevereiro, mas que já reverbera seus efeitos há quase uma década.

O resultado é, por óbvio, necessariamente chocante. O diretor nos fornece uma perspectiva dessa brutalidade do ponto de vista dos jornalistas, que arriscam suas vidas pela profissão, e dos próprios civis, que usam seus celulares para reproduzir o genocídio do povo ucraniano.

A “Guerra de Putin”, inclemente investida por ele denominada como “operação militar especial”, parece estar direcionada, de fato, à Ucrânia como povo e nação, um movimento bestial que visa algo muito mais subjetivo do que unicamente a disputa de um território. A guerra parece mirar, a cada dia, a identidade de uma nação já tão polarizada. E o faz abertamente a partir do assassinato de pessoas comuns e suas histórias.

Os alvos dos ataques militares dão conta desse direcionamento, e Afineevsky faz questão de evidenciá-lo. Em novembro de 2022, uma maternidade em Zaporizhzhia, sul da Ucrânia, foi alvo de ataques por foguetes. Dezesseis mulheres estavam em trabalho de parto no momento do ataque. O longa mostra, de forma dura, o desespero dos médicos e enfermeiros após o ataque, levando pacientes para o lado externo de um hospital destruído, totalmente desorientados. Uma dessas mulheres morreu. Um bebê recém-nascido também.

Conjuntos habitacionais em todo território ucraniano foram atingidos. Pessoas continuam a morar em suas casas sem paredes, perfuradas pelos ataques que não cessam. Em março de 2022, um teatro na cidade de Mariupol que estava sendo usado como abrigo de centenas de civis, mulheres e crianças, foi bombardeado e totalmente destruído. Dos dois lados do teatro, a palavra “crianças” havia sido escrita para visualização dos satélites e aeronaves, de forma a tentar impedir a ocorrência de ataques. Há, além disso, cidades fantasmas por todo país.

As pessoas que não têm possibilidade de refúgio em outros países inevitavelmente não conseguem fugir da guerra. Apenas aguardam a sua chegada ou tentam sobreviver a ela, lidando todos os dias com o impacto e o tremor causados pelos bombardeios. Adultos e crianças acostumaram-se a dormir sob o som do confronto, e aprenderam a diferenciar um bombardeio menor de um mais intenso e preocupante.

Liberdade em Chamas mostra, ainda, a rota da guerra em face de recursos básicos de alimentação, bem-estar e higiene da população. Depósitos de alimentos são destruídos, gasodutos que serviriam para aquecer as casas no frio cruciante do país também. Em muitos locais não há água e voluntários se desdobram para conseguir o mínimo para a sobrevivência das pessoas, principalmente das crianças.

Aliás, essa visão infantil sobre a guerra é bastante destacada por Afineevsky, e o impacto que esse choque de realidade causa no espectador é indescritível. De bebês a pré-adolescentes, a inocência paga o preço da insanidade dos poderosos. O valor da vida dessas crianças é colocado em jogo pela guerra. Assistimos com embrulho no estômago crianças separadas de seus pais, em situação de miséria e fome, endurecidas pelo conflito, desejando a morte de quem lhes dizima, em contato com a destruição a todo momento.

A inocência infantil destruída é também reativa a favor do próximo, do outro, ainda que esse seja um animal não humano, que igualmente sofre com ações a que não deu causa. Se há abandono e aniquilamento de pessoas, a importância da vida animal é relegada à zero em tais condições. É tocante como o diretor acompanha a vida de uma menina, que nos dias em que os ataques são menos intensos, deixa sua casa sem paredes para resgatar e alimentar gatos pelo bairro em que mora.

Em que pese o cenário desumano e sombrio retratado pelo documentário, a perseverança e a empatia ainda vinculam as vítimas do conflito. Há um sentimento de união e solidariedade entre as pessoas que Afineevsky estampa de forma comovente. Redes de apoios se formam em todos os cantos por mais monstruosa que seja a situação. Jornalistas se empenham, muitas vezes com suas vidas, para levar à população ucraniana e para o mundo notícias de uma realidade não contaminada pela propaganda russa e pela crueldade das fake news.

Toda essa perspectiva, essa denúncia e esse grito do povo ucraniano, são duramente necessários e registrados de forma desesperada pelo diretor através dessas imagens produzidas por quem sofre diretamente as consequências desse horror. É inconcebível que nos acostumemos às barbáries do mundo. Se o filme toca e causa desesperança no espectador, não é por qualquer melodrama ou apelo dramático do diretor, mas porque o cru retrato da realidade é excruciante. Ainda há fé na humanidade enquanto trabalhos como esse puderem nos comover.

Liberdade em Chamas pode ser assistido em São Paulo no dia 14 de abril, às 19h no CCSP, e no 16 de abril, às 14h na Cinemateca Brasileira. No Rio de Janeiro, será exibido no dia 21 de abril, às 20h30h no Estação NET Rio.

Nota

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