O Rio Não é Uma Fronteira | 2023 | Mostra de Cinemas Africanos
A violência da colonização, em qualquer lugar do mundo, veio acompanhada da intenção de extermínio de povos originários. A imposição do domínio do homem branco foi seguida do projeto de embranquecimento das nações que se formavam. Assim aconteceu, e ainda acontece, no Brasil. Primeiro, os portugueses dizimaram nossos povos indígenas. Depois, com o fim da sociedade escravocrata, iniciou-se o processo de eliminação do povo negro da diáspora, que ocorre até hoje de forma nada sutil a cada pessoa negra aprisionada pelo furto de pequena monta ou pelo porte de drogas em insignificante escala, ou ainda, a cada operação policial que mata pessoas negras como se nada fossem. O projeto está aí, vigente, é sistemático e real.
No continente africano, além do sequestro de pessoas negras que foram escravizadas e lançadas para muito longe de suas terras de origem, na maioria dos países a colonização foi seguida de um processo de segregação racial ultraviolento. Tal como o apartheid na África do Sul, a Mauritânia sofreu semelhante situação, no entanto, muito menos falada. A divisão de territórios imposta pelo colonizador acarretou numa bagunça tremenda. Nos países europeus, não mais sendo sustentável a manutenção de seu domínio no continente africano, proclamaram-se a independência de muitos países sem que fosse feito qualquer processo de descolonização. Um país forjado e destruído pela colônia foi abandonado pelo colonizador após anos de domínio.
No caso da Mauritânia, em sendo um país que, na divisão de territórios, passou a abrigar mouros (árabes) e negros, esse caos causou a segregação dos negros mauritanos. Num claro projeto de embranquecimento do país, mauritanos negros começaram a ser eliminados de forma brutal nos anos de 1989 até 1991, com aval do Estado. Os que não foram assassinados foram deportados, dentre outros lugares, para o país vizinho (Senegal) e expulsos de suas terras. E é sobre essa ferida ainda aberta que o jovem diretor Alassane Diago vai fundar seu documentário O Rio Não é uma Fronteira.
Alassane Diago faz um filme político que busca, desesperadamente, dar voz aos mauritanos expulsos de seu país por motivos raciais, e de alguma forma, cicatrizar essas feridas que persistem. Fazendo parte de uma família que abrigou pessoas nessa situação, Alassane foi alimentado pela necessidade de compreender essa parte da história que constitui um enorme tabu tanto no Senegal como na Mauritânia, dois países que até hoje sofrem com a intolerância mútua. Um dos entrevistados por Alassane, um senhor mouro, por falar sobre o assunto de forma aberta no filme, encontra-se preso pelo governo mauritano nos dias de hoje.
As dores carregadas pelas aproximadamente 40 pessoas reunidas por Alassane são inimagináveis. O diretor trabalha a tradição da oralidade para permitir que tais pessoas falem sobre o que vitimou cada uma delas, sobre o sofrimento que precisam expor. Não tenta reproduzir os horrores vivenciados por elas de outra forma que não através das palavras. Possui uma câmera paciente, por vezes estática, que escuta com extremo interesse e respeito cada uma daquelas vozes, quase sem cortes, dando a elas a chance do diálogo.
É curioso como, em sendo um filme oral, as pessoas encontrem nítida dificuldade para expressar a violência que presenciaram. É como se a nobre tarefa assumida por Alassane de ao menos mitigar a dor jamais fosse possível de ser alcançada. Elas relatam horrores que não conseguimos imaginar como reais. Estupros, canibalismo, corpos desmembrados, extermínio à queima roupa. É esse tipo de pesadelo que guardam. Presenciaram parentes e amigos sendo eliminados desta forma, idosos, adultos e crianças. A sobrevivência a tudo isso é uma benção e uma sina ao mesmo tempo.
Vemos que a estratégia de eliminação de povos, por motivos políticos, raciais, religiosos e supremacistas, se repete de forma sistemática no mundo todo. Algumas em evidência, como o genocídio do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial. Outras, que estão começando a ser reconhecidas como genocídio pelas nações de forma muito recente, como é o caso do povo armênio (sobre o assunto, o documentário O Despertar de Aurora traz uma forte abordagem). E no caso do povo mauritano negro, o simples fato de tocar no assunto gera conflitos, o que dificulta que tal acontecimento seja denunciado.
O Rio Não é Uma Fronteira faz do Rio Senegal esse personagem de divisão imaginária. Os conflitos entre Senegal e Mauritânia se iniciaram, a priori, no entorno e por causa do rio. De modo poético, Alassane reúne todas aquelas pessoas defronte a esse rio imenso. Naquela paisagem bonita e aparentemente pacífica, de um lado da margem, onde eles pisam a terra, o Senegal, do outro lado, a Mauritânia, a casa originária de todos. O país que lhes deu vida e que não mais os aceita.
Além da dor do horror, os cidadãos mauritanos mostrados pelo filme sofrem, ainda, a desumanidade de não existirem como pessoas portadoras de documentos e cidadania. O projeto de apagamento foi eficaz tanto para assassiná-las como para eliminá-las do mapa como cidadãos.
Alassane Diago, dotado por uma coragem admirável, mostra um respeito e uma vontade tremenda de ouvir as vítimas de um massacre premeditado contra cidadãos negros da Mauritânia. Além de exaltar a importância da oralidade como memória, O Rio Não é Uma Fronteira é um ato de resistência pelo mero fato de existir.
O Rio Não é Uma Fronteira será exibido na Mostra de Cinemas Africanos ainda no dia 13 de setembro, às 15h, no CineSesc (São Paulo).