O Despertar de Aurora | 28º Festival É Tudo Verdade

O Despertar de Aurora | 28º Festival É Tudo Verdade

No contexto da 1ª Guerra Mundial, entre os anos de 1915 e 1918, o Império Turco Otomano sistemicamente deportou e exterminou cerca de 1,5 milhão de armênios que viviam na Turquia. Muito embora o enquadramento dessa barbárie como genocídio seja pacífico entre os estudiosos e historiadores, há uma dificuldade fundamentalmente política no reconhecimento dessa atrocidade como tal. Até os dias atuais, cerca de 30 países reconhecem o genocídio armênio, os EUA o fizeram recentemente. É fato que o massacre perpetrado pelo Império Otomano e a tentativa de apagamento da identidade armênia serviu de inspiração ao holocausto nazista, e se a história assim o reconhecer, orienta os propósitos russos na Ucrânia (sobre a situação da guerra da Ucrânia, assista ao documentário Liberdade em Chamas, em exibição no 28º É Tudo Verdade).

Sem distinção entre crianças, homens, mulheres ou idosos, os que não eram exterminados de forma brutal e cruel ou vendidos como escravos, com sorte, partiam em fuga aos EUA, onde se fortaleceu a comunidade armênia, principalmente em Nova Iorque. O Despertar de Aurora, dirigido por Inna Sahakyan, indicado pela Armênia à seleção do Oscar 2023 de Melhor Documentário, e em exibição no 28º é Tudo Verdade, conta a história da sobrevivente do genocídio armênio Aurora Mardiganian, que após perder sua família, ser vendida diversas vezes como escrava sexual e passar por toda sorte de horrores, foge para os EUA, lá iniciando uma súbita carreira de atriz de sucesso. No único filme de sua carreira, Auction of Souls (Leilão de Almas, 1919), Aurora interpreta a si mesma na narrativa que transforma sua própria história de vida num filme que foi um estrondoso sucesso na época.

Auction of Souls se perdeu misteriosamente. Posteriormente, foram resgatados 18 minutos do filme, sendo esse seu único remanescente. Fugindo do convencional, Inna Sahakyan intercala as imagens que restaram do filme com entrevistas de Aurora Mardiganian, fazendo, ainda, uso da animação para preencher as lacunas da obra que se perdeu, numa composição belíssima de pinceladas, que imprimem no filme uma delicadeza que não seria comportada em outro formato, tamanho o horror a que foram submetidos a protagonista e sua família. O recurso da animação em longa documental aqui imediatamente nos remete à Flee, primeiro longa a concorrer concomitantemente ao Oscar 2022 de melhor animação, melhor documentário e melhor filme estrangeiro.

Essas três frentes do filme concedem ao longa um tom de dinamismo constante. O que falta à Auction of Souls e o que ouvimos da própria Aurora é suprido pela animação, que vem substituir o imaginário do espectador. O primeiro ato do filme introduz o que seria uma vida pretérita da protagonista com sua família, e suas entrevistas vem servir de narração ao que a animação nos mostra. A diretora aproveita elementos significativos da vida pessoal de Aurora, como o fato de seu pai cultivar bicho-de-seda e aprender a colori-los, e a proximidade da família toda com o teatro, para trabalhar as perdas que vão sendo sofridas após o início da tragédia armênia. A coloração dos bichos de seda ganham fios que se entremeiam em um tom vermelho belo e amargo ao sofrimento de cada perda familiar.

O bombástico sucesso do filme perdido Auction of Souls fez com que ele se tornasse um dos primeiros filmes a serem considerados blockbusters do cinema americano. O pouco contato que temos com ele através de O Despertar de Aurora surpreende por tratar-se de um filme aparentemente bastante cru para a época. De fato, esse retrato não poderia ser diferente, seja pela história em si, seja pelo esforço sobrenatural de Aurora por aceitar atuar num filme em que tudo é a representação de sua própria tragédia, de sua própria memória, do genocídio sofrido por sua nação. É a necessidade e a urgência de mostrar ao mundo o extermínio do povo armênio como um pedido de socorro que a move.

O grito de ajuda promovido pelo empenho descomunal de Aurora finda por tornar-se motivo de lucro e exploração pelos responsáveis pelo filme. Muito embora longe do horror sofrido por ela mesma e por seu povo, reviver o genocídio não foi o bastante. Aurora foi submetida a uma turnê de divulgação por todo país, que a obrigava a não só a mostrar-se, já que o filme ganhou uma fama absurda e todos almejavam se encontrar com a sobrevivente, mas a também reviver tudo o que sofreu através das reiteradas exibições do filme.

O Despertar de Aurora é o clamo contemporâneo de Aurora Mardiganian pelo reconhecimento mundial do extermínio sistêmico do povo  armênio como genocídio. Esse polêmico uso de tão forte vocábulo pode ainda causar fissuras, mas o esquecimento desse massacre é ainda mais preocupante, algo a que não podemos nos permitir. A coragem de Aurora ainda precisa reverberar, e Inna Sahakyan nos indica que ainda há muito a despertar.

O Despertar de Aurora pode ser assistido em São Paulo no dia 23 de abril às 14h30 no IMS Paulista. No Rio de Janeiro, será exibido no NET Rio – Sala 3 no dia 20 de abril, às 13h.

Nota

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