Atiraram no Pianista | 2023

Chega de saudade
A realidade é que sem ele não há paz
Não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Em seu primeiro momento, a animação da Sony Pictures, dirigida pelos espanhóis Fernando Trueba e Javier Mariscal, surge com leveza e descontração, resgatando uma memória afetiva de lugares tradicionais e essenciais para a popularização e força da Bossa Nova no Rio de Janeiro. Relembramos locais como o tradicional Beco das Garrafas em Copacabana, a Toca do Vinícius, loja de discos e livros que ficava em Ipanema (não à toa, na Rua Vinícius de Moraes), outro reduto do gênero, onde rolaram shows e muitos encontros musicais memoráveis. Sempre guiada por uma narração, feita pelo ator Jeff Goldblum (Jurassic Park), o longa vai aos poucos mostrando a que veio e se converte em um denso documentário investigativo sobre o desaparecimento e morte do pianista-título, Francisco Tenório Jr. 

Tenório Jr. foi um músico brasileiro, que tocou junto a Vinicius de Moraes e Toquinho na década de 70, Atiraram no Pianista contextualiza e resgata a história dessa personalidade menos lembrada, um instrumentista excepcional que não estava sempre nos holofotes, mas que era querido e respeitado por grandes nomes da música brasileira. Durante uma temporada de shows em Buenos Aires em março de 1979, às vésperas do golpe militar na Argentina, Tenório Jr. desaparece sem deixar rastros. Os diretores coletam relatos que mostram diversos pontos de vista e vão costurando seu misterioso desaparecimento. Entre contribuições de artistas como João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes e Paulo Moura, jornalistas e familiares, vamos conhecendo mais profundamente o pianista, sempre a partir da curiosidade e paixão de um jornalista musical americano, que por ser fã de Tenório, acaba obcecado por desvendar sua história.

O longa, que também soa como uma declaração de amor ao Rio de Janeiro e à música feita aqui, mescla a linguagem da animação com o recorte documental. Eu, como carioca nata, reconheci cada canto, cada bar, cada nuance da cidade que foi representada sob tons bem coloridos na animação assinada por Javier Mariscal, que além de diretor, é designer, ilustrador e desenhista. Logo no segundo ato, o tom do filme muda e toda leveza inicial se converte nesse jogo de cenas de entrevistas, gravações e telefonemas que o jornalista-narrador consegue coletar através de um amigo brasileiro (dublado por Tony Ramos). Esse amigo, que recebeu o jornalista vindo de Nova Iorque para o Rio de Janeiro, faz os contatos e o leva de carro até os personagens que estão dispostos a conversar sobre o passado de Tenório. 

Vamos de encontro a vida pessoal, romântica e espiritual do pianista. Toda sua história, ainda que breve e misteriosa, é fascinante. O longa se utiliza de trechos e faz referências mais de uma vez, à música “Chega de Saudade”, composta por Vinicius de Moraes e Tom Jobim em 1956, que soam  especialmente coerentes. Atiraram no Pianista trata de um personagem que sumiu e teve sua presença dissolvida pelo tempo, conforme relatos de seus cinco filhos, que guardam apenas memórias turvas de Tenório, sua ex-esposa (mãe de seus filhos) e sua amante. A figura de Tenório Jr. é a todo momento lembrada no passado, com pesar pelas pessoas que o rodeavam e conviviam com ele. “Saudade” é uma palavra que não possui uma tradução literal em outras línguas, é uma expressão particularmente brasileira, tratando-se de seu significado e grafia, assim como a Bossa Nova, e é interessante identificar essa particularidade em um filme com uma direção estrangeira, falado em língua inglesa.

Trueba, que já levou um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1993 por “Belle Époque”, se mostra um apaixonado pelo Brasil e pela música brasileira. Sua direção, unida a animação de Mariscal, trata com extremo respeito e honra a história de um homem que foi levado por militares, torturado e morto, provavelmente por engano, e que, possivelmente, ninguém nunca realmente saberá dos detalhes reais do passado vivido naqueles últimos dias em Buenos Aires, das nuances da noite em que foi sequestrado, do que se passou momentos antes de seu desaparecimento e estas, certamente, são questões encontradas em Atiraram no Pianista, revisitadas e investigadas com atenção. 

Filme visto através de nossa cobertura do 25º Festival do Rio, acompanhe tudo aqui