DogMan | 2023
Uma figura enigmática, com maquiagem borrada e peruca loira, conduzindo um furgão cheio de cachorros, é abordada por uma viatura policial. Num jogo de luzes vermelha e azul da viatura, um filme parece querer tomar rumos de O Silêncio dos Inocentes ao levar o personagem Douglas (Caleb Landry Jones) à prisão para ter sua mente elucidada pela psiquiatra Evelyn (Jonica T. Gibbs), numa conversa que perdurará durante sua parte majoritária. DogMan, novo longa de Luc Besson, ressurgindo após de um hiato de seis anos, instiga a curiosidade do espectador para desvendar o personagem e seus ares misteriosos, sendo esse interesse o fio condutor de todo o longa.
Através dessa linha investigativa e psicológica é que Besson nos fará conhecer seu protagonista – uma explicação que vai desde a infância e traumas de Douglas até chegar em sua prisão. Douglas é uma pessoa queer que tem apreço em se vestir com roupas femininas, e que não tem a sexualidade exatamente rotulada. Num flashback um tanto dramático, somos levados a conhecer sua vida infantil, quando, após questionar uma situação de maus tratos de animais, é trancafiado num canil pelo pai, caricaturalmente vilão, por dizer que ama mais cachorros do que sua própria família. Essa prisão, violência, abandono e desumanização da criança findou por causar uma deficiência em Douglas, que perde a capacidade de sustentar-se em pé por mais de alguns minutos, tornando-se dependente de uma cadeira de rodas.
Com esse passado triste, já adulto, o personagem vive uma jornada de superação e sobrevivência no submundo e na marginalidade, cuidando de uma centena de cachorros, todos adestrados. Após ser socialmente rejeitado, vira performer de Edith Piaf numa casa noturna e atua como uma espécie de Robin Hood, prestando favores aos mais pobres.
Luc Besson não omite o caráter caricatural e apelativo de sua narrativa e a forma como a conduz. Entretanto, mesmo abraçando o exagero dos acontecimentos, leva-se a sério demais em alguns pontos, o que finda por tornar o filme um pouco confuso em seu propósito. DogMan parece ser fruto de um grande insight do diretor com Douglas, pessoa LGBTQIA+ e com deficiência e suas centenas de fiéis companheiros não humanos. Todo o resto foi sendo encaixado especificamente para sustentação dessa figura e sua história, o que funcionou parcialmente.
Caleb Landry Jones é realmente o ponto alto de DogMan. O ator consegue humanizar Douglas com muita sensibilidade e doçura, subvertendo o caráter psicótico ou mesmo vilanesco que esperamos vislumbrar do personagem. Jamais altera seu tom de voz, sendo sempre gentil e muito educado, imprimindo autenticidade e de fato comovendo com suas performances de Edith Piaf.
O tom azul e vermelho da viatura serão novamente encontrados, dessa vez na boate onde Douglas trabalha e onde encontra algum afeto. O diretor conduz tudo num estilo muito próprio, com um uso emblemático de sombras, luzes e ângulos que se alinham para manter o interesse pelo personagem, movimentos por vezes desnecessários considerando a presença forte de Landry Jones. Essa estilização interessante se perde para o brega nos flashbacks da infância do personagem, que soam constrangedores e estranhos em sua grande parte, muito devido ao apelo dramático daquele período e da falta de cores desse retrato passado.
Besson nos ganha em DogMan pelo talento de Landry Jones, seu interessantíssimo e delicado personagem e suas nuances, pelos animais não humanos (que jamais se ferem, para alegria dos amantes dos cachorrinhos) que compartilham sua marginalidade e pela estilização do exagero quando o diretor o pretende, mas se perde no universo melodramático que ele cria para funcionar contra a sorte de tal protagonista.