As Bestas | 2023

As Bestas | 2023

Jean-Jacques Rousseau, importante filósofo franco-suíço, debruçou-se sobre as complexidades da formação social e política de seu tempo. Foi ele, no chamado período Iluminista, que popularizou o termo “bom selvagem” para tratar do estado de natureza do ser humano. Para Rousseau, os conflitos presentes entre os homens têm uma origem: a propriedade privada. Quando começamos a marcar um território e chamá-lo de meu, criamos fronteiras, erguemos muros, perdemos a nossa essência pura e ingênua para iniciarmos uma guerra de todos contra todos em busca de mais terras. As Bestas, filme do espanhol Rodrigo Sorogoyen, é uma reflexão sobre esses limites impostos na vida social, sobre como o bondoso selvagem se torna o vizinho impassível e violento, defendendo o que julga como seu.

Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs) são um casal de franceses que se muda para um pequeno vilarejo na Galícia, região autônoma da Espanha. Eles abrem mão da vida na França para perseguir o sonho de morar nas montanhas, cultivando alimentos orgânicos e montando um negócio de turismo. Mas quando esse objetivo entra em conflito com o interesse dos galegos, os dois se veem obrigados a comprar uma briga indesejada ao recusarem negociar suas terras para a construção de uma usina eólica. Partindo dessa premissa e baseando-se em uma manchete real, Sorogoyen e Isabel Peña escrevem um roteiro recheado de nuances que vão adicionando cada vez mais tensão à trama. A constante ameaça vinda de fora nos coloca sempre ao lado dos franceses, sem deixar de nos confrontar com o dilema daquele povo empobrecido, que vê na venda de seus terrenos uma possibilidade de prosperar, impedida pela negativa de Antoine e Olga.

A hostilidade do ambiente nos é apresentada desde a primeira cena, quando alguns homens estão domando cavalos selvagens. Para que as bestas sejam contidas e capturadas, eles precisam agarrá-las, puxá-las, torcê-las, em uma belíssima mistura de luta e dança muito bem orquestrada pelo diretor espanhol. Essa referência será retomada no último ato do filme, firmando o brutalismo humano e sua necessidade de conquista, fazendo alusão ao manejo animal.

Logo essas imagens dão lugar a um diálogo que também exala violência. Em uma mesa de bar estão conversando alguns galegos, entre eles dois dos personagens mais importantes de As Bestas, os irmãos Xan (Luis Zahera) e Loren (Diego Anido), que gritam e discutem sobre o biotipo “francês”. As ofensas proferidas e a cólera da conversa entre os nativos fazem sentido quando descobrimos que Antoine estava naquele mesmo bar, como alvo indireto. Certamente ele não é bem-vindo e o motivo é que sua assinatura vendendo as terras seria sinônimo de lucro aos moradores da vila. Sorogoyen não tem pressa para a construção de sua narrativa, cadenciando todo o ritmo do filme com a ameaça quase invisível e silenciosa dos vizinhos contra Antoine e Olga. 

A reação de Antoine é, de certa forma, contida, dentro da lei. Ele vai à polícia denunciar a perseguição e a forma como é tratado pelos irmãos. O fato de não ser nativo da Galícia, o faz não receber as devidas atenções das autoridades. Essa inospitalidade é fruto da xenofobia cometida pelos tradicionalistas daquele lugar. Antoine suporta até o momento em que as intimidações extrapolam as palavras, quando decide, então, tomar sua “arma” e ir à luta.

Aqui, Sorogoyen e Peña fazem o roteiro de As Bestas abraçar uma outra relação narrativa, agora com a própria imagem, já que a “arma” de Antoine é uma câmera para registrar as ações de seus vizinhos. Filmar, pare ele, estabelece um regime absoluto da verdade em seu discurso, colocando Xan e Loren como vilões da história. Porém, ainda não é suficiente para que seu sofrimento seja levado a sério pela polícia espanhola. O casal tem como única testemunha real o espectador do filme. Somos nós que presenciamos o fim do “bom selvagem” em defesa da propriedade e do interesse, a guerra de todos nasce diante de nossos olhos.

Essa escalada de tensão descrita nos parágrafos anteriores é potencializada pelo quarteto de atuação principal. Zahera e Dinido têm uma presença que não necessita de palavras, apenas de olhares tortos e expressões lavadas; Foïs transparece serenidade, mas no último terço do filme mostra sua força visceral; Ménochet tem um leve desespero no olhar, acompanhado pela perseverança em realizar seu sonho na Galícia. Quando pelo menos três desses personagens contracenam é inevitável sentir um misto de medo e complacência.

As Bestas é um suspense muito bem amarrado. Há de se destacar também a trilha sonora, por Olivier Arson, que sabe usar os momentos de silêncio para potencializar as imagens e seu realismo, como, por exemplo, a rima com a cena da doma dos cavalos, que acontece em um importante momento do filme, feita apenas com o som ambiente, diferente da abertura lírica. Aliás, o dualismo homem-animal é um símbolo importante dentro da narrativa, aproximando esses dois eixos, mesmo que sejam os humanos ditos civilizados.

Eis um filme sobre território e tudo que isso implica, desde a separação como demarcação, até como ódio e xenofobia. As Bestas, dirigido por Rodrigo Sorogoyen, trata da complexidade que é a política e as relações humanas de maneira muito eficaz. Ainda há o jogo com a câmera, dita como “importante” por um dos personagens, afinal, é ela quem deveria registrar os fatos, mas, quem vai interpretá-lo? O Cinema nos lança inevitavelmente nessa questão e somos intimados a ler tais imagens criando um juízo. Esse filme usa isso também como artefato da tensão em contexto, com um roteiro inteligente e uma direção devidamente compassada.

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