O Poder do Sexo – O Império dos Sentidos | 1976 

O Poder do Sexo – O Império dos Sentidos | 1976 

Por Gabriela Rosa 

         Escrever sobre O Império dos Sentidos (1976), de Nagisa Oshima, é como um carvão que dará vida às minhas loucuras, curiosidades e ambições artístico-mentais. Como sair das nossas práticas cotidianas e entrar na cena dramática? Ir além do império político em direção ao império dos sentidos? Nos deparamos com a arte, e somos arrastados para fora da estagnação psicológica. O que se trata é de perceber o cinema, mais precisamente, o cinema erótico, como possibilidade do ser e intenção do querer.

O produtor francês Anatole Dauman apresentou a Oshima duas histórias como propostas de um novo filme a ser produzido, sendo uma delas a de Sada Abe,  que mais chamou atenção e despertou vontade em Oshima. Era a história real de Sada, uma prostituta que ficou conhecida por matar de asfixia seu amante durante o ato sexual em 1936. Foi presa e, depois da Segunda Guerra Mundial, libertada. Lúcia Nagib, teórica da história do cinema mundial, relata que Donald Richie, especialista na cultura e no cinema japonês, conviveu com Sada após sua libertação. Ele relata que a meretriz arrumou um emprego em Inari-cho, no centro de Tóquio: no Hoshi-Kiku-Sui – a Água do Crisântemo-Estrela – , um bar. Ali, toda noite, trabalhadores da redondeza se reuniam para beber saquê e “shochu” e beliscar lula grelhada com picles de nabo. E toda noite, por volta das dez, Sada Abe aparecia. Era esplêndido. Ela descia a escada. Sempre vestida com um quimono chamativo, algo que restara da época de seu crime. Abe surgia no topo dos degraus, parava, observava a plateia embaixo e então descia lentamente. 

     No filme, ambientado nos anos 30, a ex-prostituta  interpretada por Eiko Matsuda, se apaixona pelo chefe Kichizo Ishida (Tatsuya Fuji). Os dois vivem uma paixão intensa e obsessiva, na qual o ato sexual se torna incessante e, se assim se pode dizer, o personagem principal da relação. O Império dos Sentidos retrata de forma explícita o sexo, o desejo, o poder e o controle. 

     O longa de Oshima  normalmente é classificado como um filme pornográfico. É certo que o diretor  filma cenas de sexo explícito, como por exemplo a cena em que Kichizo Ishida ejacula na boca de Sada Abe, no entanto, seus  propósitos são outros. Sobre o aspecto formal, Oshima filma a lógica do ato sexual, suas posturas, seus movimentos, o atrito dos corpos na cena erótica. Duas pessoas. Desejo. Poder. Controle. Até onde isso é sustentado? O que faz a necessidade e o desejo superarem a paixão? Quase criminosamente é expressa a relação entre os dois.

     É possível perceber que o diretor japonês joga de forma tática no filme, trazendo aspectos da cultura ancestral do Japão: como o uso do vermelho nos tecidos, o tambor e as flautas durante o sexo de Abe e Kichizo. A utilização da cor vermelha e suas matizes rosa, marrom, roxo e vinho no filme foram intencionais e muito bem elaboradas, tal como aparece no teatro Kabuki, teatro tradicional japonês que se caracteriza pelo exibicionismo, fantasias e estilização. Neste tipo de espetáculo observa-se essas cores fortes e rudes, apresentando uma conotação sexual. Como anota Nagib: “percebe-se, portanto, que o vermelho ultrapassa, no filme, a mera intenção de chocar, conferindo sutilmente a inúmeros objetos e detalhes uma conotação erótica. E como o sexo aqui é poder, o vermelho se torna a cor do poder”.

     Ao pensar O Império dos Sentidos para além da imagem nos ligamos à pulsação de imagens magnéticas, como um cordão umbilical. Faz-se necessário, então, entender o erotismo não só como prática sexual – ou “sacanagem”, mas sim, como uma expressão lúdica e filosófica constituinte do ser humano, como pensa Platão no texto “O Banquete”. 

        Tomo o teatro como possibilidade de criação necessária e inquietante. Portanto, precisando sempre de um ritmo magnético para sugar o espectador a ver “até o final” da cena. Para que isto possa acontecer, é necessário um estímulo dramático, como signos vividos fora da realidade da época, como é feito no filme.

       No longa, observa-se um teatro lúdico e completamente transcendente. Perdidos na paixão e no sexo, Sada Abe e Kichizo Ishida vivem em contato constante com planos de outra realidade, mais em outra realidade na qual o sexo é infindável e mortal. No Japão ancestral se conversava aberta e livremente sobre o erotismo, sexo, sodomia e várias outras perversões, que não só eram faladas, mas também, cultivadas na cultura japonesa da época. É importante ressaltar que Oshima traz uma/um sensação/sentimento de libertação para o contexto de uma época de censura que vivia o Japão. 

O Império dos Sentidos Nagisa Oshima

      Vemos, assim, no filme, as personagens vivendo no interior de dois impérios, o império japonês com sua soberania e sua ordem política e social – cuja tradição modela as personagens; e o império dos sentidos: o casal de amantes são governados pelas forças subversivas da cena erótica na qual eles se instalam. Aproximamos essa cena erótica do filme ao que nos aponta o pensador francês Antonin Artaud em seus textos sobre teatro. O autor propõe uma cena dramática que rompa com as características de um teatro convencional e convoque forças subversivas, que ele nomeia de “Teatro da Crueldade”. Crueldade como força de transcendência. Ao convocar Artaud dizemos que no império dos sentidos há uma espécie de “maldade inicial”: no jogo erótico o desejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências; a morte é crueldade, a ressurreição é crueldade, a transfiguração é crueldade.

Portanto, Artaud ajuda, certamente, a fundamentar a ideia do teatro como um ritmo magnético passível de perturbar quem o assiste e trazê-lo para outros estados do espírito, que se conectam com o que há de mais nebuloso e perverso do ser. Deste modo, o erotismo no filme aparece como fuga a uma moral muito presente na época em que foi filmado, no Japão da década de 1970. Moral essa, tão forte, que fazer cinema no momento era um ato de rebelião.

Como em um teatro da crueldade, nos termos de Artaud, em O Império dos Sentidos, o diretor subverte os padrões, supera os tabus e instaura a transgressão. A encenação pornográfica que o filme apresenta, serve aos propósitos subversivos do autor, já que o sexo, levado a situações limites pelos personagens do filme, a mistura de sexo, erotismo e morte produzem no espectador uma inflamação dos seus sentidos e desejos. Transportando-o para o império dos sentidos e tornando-os disponíveis para os propósitos políticos e transgressores do autor. O cinema de Oshima, sem dúvida próximo da Nouvelle Vague Francesa, entende que cinema, política e filosofia caminham juntos.

2 thoughts on “O Poder do Sexo – O Império dos Sentidos | 1976 

  1. Muito bom texto, com uma visão esclarecedora que nos deixa com vontade de assistir o filme novamente.

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