Pobres Criaturas | 2023

Pobres Criaturas | 2023

Estamos no século XXI e no auge da problematização (e com razão) do sexismo e dos moldes de sociedade patriarcal aos quais somos estruturalmente inseridos. Pobres Criaturas, novo filme de Yorgos Lanthimos, diretor grego conhecido por produzir obras como Dente Canino (2009) e O Lagosta (2015), que provocam o senso comum e costumam chocar pelo teor de violência e bizarrices em suas abordagens, propõe uma releitura bastante contemporânea da história do Frankenstein, escrita por Mary Shelley na Inglaterra em 1818, expandindo sua narrativa. A obra, que já foi contemplada com inúmeras adaptações cinematográficas ao longo dos anos, começando com a de James Whale em Frankenstein de 1931,  ganha, aos olhos de Lanthimos, um prisma bastante diferente de tudo que já foi feito, e agrega outras diversas referências do cinema clássico de horror, para conjecturar um filme que (surpreendentemente) conversa tão bem com o universo feminino.

Bella Baxter (Emma Stone) é uma criação do Dr. Godwin Baxter “God” (Willem Dafoe), um corpo morto de uma mulher grávida que foi resgatado e trazido de volta à vida através de um transplante cerebral com o próprio bebê, pelas mãos do ousado cientista que a batiza com seu sobrenome. Somos apresentados ao universo sombrio da casa de God por uma câmera em grande angular bastante acentuada e disforme em preto e branco. O casarão, que possui muitos cômodos, escadas e andares, é retratado por uma filmagem perambulante que chega a causar vertigem e uma sensação de desconforto no ambiente que, além de lar, é também laboratório para os experimentos de God. 

Na casa do médico, onde Dafoe  veste muito bem a carapuça de cientista obcecado por suas invenções, – como em A Ilha do Dr. Moreau de H. G. Wells (thriller sci-fi de 1896 que aborda o uso indevido da ciência com experimentos entre homens e animais); circulam pequenas criaturas bestiais, corpos de animais modificados, retalhados e reconectados, como um animal metade cachorro, metade pato, por exemplo. O rosto de God é desfigurado, reflexo de sua infância e juventude violenta sob a alcunha de um pai insano que lhe arranca o senso de moral e ética em seu ofício. A aparência do personagem, suas disfunções e predileções pelo bizarro da mutação e modificações corporais, lembram aspectos do cinema de David Cronenberg, diretor que usa tão bem a matéria orgânica e suas abstrações.

Em um primeiro momento, percebemos Bella como uma criatura desajeitada, rude e infantil, sendo educada a fazer as atividades mais básicas, como comer, andar e falar. Ela age de maneira primitiva e intuitiva, apresenta limitações motoras e de raciocínio. Ao lado do doutor está seu assistente, o jovem Max McCandless (Ramy Youssef) que é incumbido de cuidar do monitoramento do progresso de Bella e se afeiçoa rapidamente a ela. A relação dos homens com a protagonista, no começo do filme, é de deslumbramento. Seu criador a admira, o jovem Max se apaixona subitamente e qualquer outro que a veja, desenvolve uma necessidade de aproximação com essa criatura de beleza exótica e cativante, que, ao mesmo tempo, ressoa suas limitações e fragilidades. Tais características acabam aflorando o interesse sexual dessas figuras masculinas, atreladas a seu instinto de dominação diante de uma aparência tão frágil.

Lanthimos nos introduz ao despertar do desejo masculino pela protagonista, antes de ela ter despertado seu próprio. Com uma mente infantil, Bella é muito mais um fetiche do que uma fetichista, mas a bebê no corpo de mulher aprende a virar esse jogo rapidamente, e é aí onde Pobres Criaturas brilha mais. Como a grande maioria de nós humanos, em algum período entre a infância e a adolescência, começamos a descobrir o prazer, com Bella não é diferente. Ela descobre sozinha como se satisfazer, sem tabus ou amarras de uma sociedade desconhecida para ela. Ser uma criação de laboratório lhe concede certa neutralidade pessoal evolutiva, onde ela usa e explora suas descobertas livremente, pois não recebe instruções e regras de conduta, como acontece desde a infância em uma sociedade. Assim que as pessoas à volta de Bella percebem seu comportamento “inadequado”, a repreendem e o filme nos faz refletir sobre quão podados somos enquanto seres sociais.

É por meio do personagem interpretado por Mark Ruffalo, que Bella se abre para o sexo. Duncan Wedderburn é um homem extremamente autoconfiante e malicioso que chama a moça para uma aventura. A palavra “aventura” parece fazer a cabeça de Bella brilhar e ela, a contragosto de todos, sai de casa para finalmente conhecer o mundo. É interessante notar que a evolução humana de Bella corre paralelamente com o declínio da personalidade de Duncan. O homem tão seguro de si, que alerta a moça para que não se apaixone por ele quando a convida para viajarem juntos, pois seria apenas uma aventura, e acaba aprisionado em um ciclo de humilhações pela atenção e exclusividade de Bella devido à sua necessidade de posse.

As jornadas da protagonista são encantadoras, ilustradas por um universo beirando ao fantástico, com formas, cores e dimensões alteradas, um mundo real com um pé fincado na fantasia. O que era preto e branca, ganha uma roupagem ultracolorida. O trabalho de cor usado em Pobres Criaturas, assim como o figurino ultra estilizado e a maquiagem, dão um tom caricatural à obra, que desdobra preocupações e sentimentos bastante reais e atuais, em lugares reais, mas em uma expressão surrealista. A protagonista então tem seu primeiro contato com a arte e a música e se emociona ao ouvir um fado português; em uma viagem de navio, faz seus primeiros novos amigos, se encanta com a literatura e a filosofia. As questões filosóficas ao que diz respeito às liberdades individuais humanas ficam mais intensas e Bella, já com mais entendimento de si mesma, escolhe sua inclinação política, entende sua liberdade como mulher, se mantém firme e luta em favor dela.

 Essa dicotomia entre a “Bella primitiva” que viveu nos limites do casarão e a “Bella social” que conhece o mundo, traz uma avalanche de enfrentamentos para a protagonista e para o modo como a enxergam: seu jeito de entender o mundo, de perceber seu próprio corpo e desfrutar do prazer erótico. A mulher que antes parecia uma morta-viva, a grosso modo, aos moldes de Re-Animator (1985); evolui rapidamente, ganha personalidade e autonomia. 

O pré julgamento masculino de que a mulher, apenas por ser mulher, vai se tornar pedante, romântica e dependente emocionalmente do homem, cai por terra. Bella usa Max mais do que ele gostaria de usá-la, nessa troca de experiências que rende muitas cenas intensas de sexo, corpos nus, perversões e uma libido incontrolável. Emma Stone interpreta com muita expressividade e personalidade uma mulher que não tem vergonha do sexo, que não romantiza o prazer, que não se diminui para viver uma relação. Por outro lado, Mark Ruffalo também encontra o equilíbrio perfeito entre o charme perigoso de um galanteador, com o constrangimento de sua patética obsessão de ser o centro da vida de Bella.

Pobres Criaturas joga uma enxurrada de reflexões sobre o prisma da liberdade sexual feminina, como quando Bella vai trabalhar em um prostíbulo para se sustentar e a forma como ela é julgada e desvalorizada por Duncan depois disso. O filme consegue criar um elo empático entre o espectador e a protagonista, que ao sofrer as mazelas do conhecimento, evidencia o enorme enlace patriarcal que sempre existiu em nossa sociedade. É admirável o trabalho do diretor grego, enquanto homem, criar um bom texto, imagens e sons tão intensos relacionados à questões do universo feminino. Prova que esse problema, na verdade, não é feminino, é de todos nós humanos, e principalmente dos homens e seus olhares indigestos.

Nota

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  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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