Dahomey | 2024

Dahomey | 2024

Direção: Mati Diop
País: Benin, Senegal, França 
Assistido em 18/02, no Berlinale Palast
Mostra: Competitiva

Souvenirs piscantes coloridos da Torre Eiffel enfileirados sobre uma toalha estendida no chão. É assim que Mati Diop, diretora franco-senegalesa (Atlantics) inicia Dahomey, documentário da Mostra Competitiva da 74º Berlinale, que parte de uma proposta simples: filmar a devolução, pelo governo francês de Emmanuel Macron ao Benin, de 26 artefatos históricos pertencentes ao reino de Daomé, roubadas pela colonização francesa. 

Em Atlantics, Diop já se mostrava uma cineasta que se apropria das simbologias proporcionadas pela imagem de forma muito poderosa, usando de elementos do horror para potencializar reflexões. Enquanto lá ela transforma meninas em zumbis que querem reivindicar o direito de seus entes queridos mortos, aqui ela transcende o que seriam peças de museu para uma entidade representativa de toda uma ancestralidade e da história sequestrada de um povo, dando-lhe literalmente voz, uma voz fantasmagórica que narra não somente esse momento de absoluta e incontestável importância, mas que questiona, reflete, que quer se encontrar, que sai de uma escuridão para adentrar outra. A reparação histórica estratégica pensada pelas autoridades atuais é muito mais complexa do que o evento político em si. E a diretora não desperdiça um momento sequer para traduzir tal complexidade para nós.

Como contar essa histórica transição em documentário? Diop nos dá a mais genial e potente resposta através de Dahomey. Não há nada de tradicional aqui, a cineasta foge das fórmulas documentais e imprime um amor e um cuidado tão imensos a seu projeto que ele ressoa em nós por meio de lágrimas e arrepios. Facilmente o filme poderia depender da força das esculturas e artefatos devolvidos por si só: a principal delas é uma impressionante representação do Rei Ghezo, reduzida à nomenclatura “26”, de punhos cerrados, em cinturão de guerra feito de metal. Mas não depende. Joga essa força em tela nos ângulos mais calculados e fornece mais.

Como dito, Dahomey é simbólico em termos de imagem e história. A diretora se interessa por todo processo logístico entre os países, e torna um cuidadoso carregamento da estátua do Rei Ghezo, envolta de panos e cordas que lhe mantenham segura para o transporte (afinal, trata-se de uma estátua de 220 quilos), em algo semelhante a um corpo enforcado que vai descendo por sua corda. Chama a nossa atenção às mãos brancas francesas tocando as obras. Sons simples causados por uma fita vedando uma caixa ou de um avião prestes a decolar são aterrorizantes e estranhos quando a diretora posiciona sua câmera dentro da caixa o Rei Ghezo é colocado, registrando todo seu fechamento, até que não haja luz externa. Impacta e provoca quando mostra as peças sendo carregadas por muitos homens negros, enquanto um branco dá os comandos. Causa um efeito impressionante quando filma as luzes do museu em Benin se apagando, para mostrar as mais imponentes estátuas gradativamente: quando uma é apagada, a outra surge em reflexo. Ela escolhe com precisão minuciosa aquilo que quer mostrar.

26, volte para casa!” O filme faz o Rei Ghezo reivindicar seu verdadeiro nome na narração em off. Ele volta, um evento político acontece com a presença de autoridades, e o povo festeja a reparação. Diop espia as pessoas e suas expressões. Depois da euforia comemorativa, nos magnetiza com a descrição da situação física das peças, os materiais que são forjadas, seus pesos, suas avarias, tudo na voz de um especialista que não é diretamente filmado, ouvimos sua voz e somos atraídos pela força das obras. Durante todo o longa, são raras as aparições diretas das pessoas, sempre entre vidros, entre espaços e artefatos.

Só haverá esse direcionamento explícito quando a diretora nos lança num debate coletivo, democrático e justo entre jovens estudantes sobre a devolução dos artefatos, seus significados e consequências, que surge furioso e ávido quando o filme parece querer amornar, no que se torna um ponto muito elevado. Ali, pessoas têm plena voz e espaço para discutir o consumo da cultura ocidental pelo Benin, a língua francesa como principal no lugar do fom, a ignorância estrategicamente calculada do povo sobre sua ancestralidade, sua cultura e sobre a relevância daquelas peças que foram roubadas. Aquilo que era ensinado como “coisas” que foram apropriadas pela colonização francesa eram, de fato, tesouros. Reflete-se sobre a cultura material e imaterial de um povo, e um forte questionamento é trazido: foram 7000 peças roubadas. A devolução de 26 delas é suficiente, é motivo de celebração ou é um insulto?

Vê-se que não somente as obras sequestradas de Daomé foram submetidas ao movimento de voltar para a casa, mas todo o povo beninense que reencontra sua ancestralidade. “Somos escravos de nós mesmos”, diz uma estudante que reflete sobre não saber falar o idioma originário. É extremamente significativo que Mati Diop faça dessas obras restituídas uma obra de arte do cinema, enquanto é questionada, durante a coletiva de imprensa da Berlinale, por um jornalista europeu que notoriamente se viu no direito de ser abrupto com uma mulher negra, sobre supostamente não ser africana. Diop informou ao desavisado que é, sim, africana, e esse sem compreender, insistiu que sabia que ela possuía a ancestralidade, ao que prontamente a diretora respondeu: “Eu sou africana, sou franco-senegalesa”. Num festival notoriamente dominado por pessoas brancas (vê-se a olho nu mesmo), a presença de uma única diretora negra na Mostra Competitiva falando sobre a violência da colonização através de documentário tão vigoroso e sensorial, visivelmente, incomoda a muitos.

Nota:

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