O Menino e a Garça | 2024
Experiências de superação, luto e um resgate afetivo de Miyazaki, após mais de 10 anos sem fazer filmes
Abordagens sobre o universo infantil e suas dificuldades nunca foram um grande desafio nas obras de Hayao Miyazaki. O cineasta e animador japonês de 83 anos, realiza mais um filme pelo Studio Ghibli, o qual é co-fundador, mas que dessa vez resgata o espírito de suas obras mais consagradas com esse deslumbrante trabalho indicado ao Oscar 2024 de Melhor Animação. Mesclando a cruel realidade de um país que sofre com a Guerra, e um particular subterfúgio lúdico, o diretor nos introduz à realidade do protagonista em O Menino e a Garça, seu décimo segundo longa-metragem.
Mahito é um menino de 12 anos que se esforça para reestruturar a vida em uma nova cidade após a morte de sua mãe. Amparado por seu pai, em um conturbado contexto de Segunda Guerra Mundial no Japão, eles se mudam para uma parte rural no interior do país. Somos apresentados à atmosfera militarizada da época, sob uma sensação pesada, densa, com cores sóbrias, mas, ao mesmo tempo, esperançosa com as demonstrações de união de um povo humilde que torce pela paz. Ao chegar à casa em meio a floresta, o menino vai ter o primeiro contato com sua nova madrasta, e Miyazaki, já no primeiro ato do filme, não nos poupa em demonstrar como esse fato perturba o pequeno protagonista, que tem bastante dificuldade em aceitar que sua tia tomaria o lugar de sua mãe. O longa abre com imagens que trazem forte impacto emocional e visual e arrebatam o espectador, como em cenas do grande incêndio que viria a findar com a vida da mãe de Mahito, seu desespero ao correr contra uma multidão de adultos em direção ao fogaréu, com muito movimento.
Depois da tormenta chegam os dias bucólicos na nova casa do menino, que passam lentamente, mas não demora para que ele queira explorar os arredores. Praticamente sozinho na maioria do tempo, pois seu pai fica ausente por conta de seu ofício como projetista de peças de combate, ele concentra suas forças em tentar sobreviver aos novos colegas de classe, que não são amistosos com ele. Se sentindo um forasteiro, que de fato é, o menino se isola, arruma um modo de não ir mais à escola e passa a prestar mais atenção ao que o cerca em casa.
Em sua janela surge uma enorme garça imperial, ela parece querer se comunicar com Mahito, primeiro timidamente, e depois, cada vez mais incisivamente. O personagem da garça, em O Menino e Garça, representa uma figura bastante ambígua. Às vezes altruísta e muitas vezes assustadora, ela informa a Mahito que sua mãe ainda está viva e o leva a entrar em uma torre abandonada em busca da mãe, sem saber que ela era também um portal para um mundo fantástico. Pronto, agora sabemos que estamos num filme de Hayao Miyazaki e que o universo lúdico e o surrealismo dos acontecimentos vão inundar completamente a obra. Essa transição é importante e é um fator definidor da assinatura do diretor japonês, que nesse longa resgata sua história de vida e homenageia seus antigos e mais queridos personagens.
No Japão existe uma ave chamada grou, ou tsuru, que não é uma garça, mas se assemelha bastante a ela. Dizem que essa ave é a “Mãe de todas as aves”, pois acredita-se que possam ser os pássaros mais velhos da Terra. Essa lenda conta que os tsuru faziam companhia aos eremitas que meditavam nas montanhas. Estes tinham poderes místicos e fizeram com que o tsuru pudesse viver por mil anos. Por isso, a ave acabou sendo associada à longevidade e sorte e passou a ser bastante representada através da arte, como: dobraduras (origamis), literatura e folclore. O origami japonês foi muito importante durante a Segunda Guerra Mundial, como forma de amenizar os terrores das explosões e devastações no Japão. O tsuru é a forma de origami mais popular no país, onde também sustenta a lenda na qual a dobradura de 1.000 tsurus traz força, esperança e saúde, iniciada pela história da menina Sadako Sasaki, morta em decorrência dos efeitos nucleares.
Em O Menino e a Garça, não temos uma ave branca como o grou, ou tsuru, mas sim uma garça imperial, imponente e colorida, que fala cheia de dentes e se transmuta, mas as referências à ave do origami se encaixam perfeitamente na narrativa do diretor japonês, que trabalha o luto da criança, que depois de perder sua mãe para a Guerra, batalha com sua expectativa constante de resgatá-la, para que vivam mais tempo juntos. Ao mesmo tempo sua madrasta adoece e fica acamada, fazendo com que Mahito comece a sentir empatia por ela, a figura adoecida perante a Guerra aparece como um sinal de alerta e protesto.
A garça guia o menino para a torre abandonada, onde ele buscará respostas acerca do paradeiro de sua mãe e de resgatar a saúde de sua tia/madrasta que parece aprisionada. Ao atravessar a porta que o leva para um universo colorido e fantástico, completamente avesso a calmaria de sua realidade, o filme se comunica bastante através dos animais com o protagonista, que continua lidando sempre com a dualidade nessas relações.
Os personagens, humanos ou não, têm em si algo de bom e de mal, com condutas passíveis de ponderação e questionamentos, sem um maniqueísmo explícito entre vilão e mocinho na história. Isso acontece ao conhecermos, por exemplo, o grande periquito que se mostra um tirano dentro da torre; a garça que parece querer enganar o menino com suas falas, o pai de Mahito que em curto tempo se relaciona com a irmã de sua finada esposa e o próprio Mahito, que mente para fugir da escola, e que, ao receber a proposta de um velho eremita sobre ser seu sucessor em uma missão para restaurar o equilíbrio do bem no mundo, prefere recusar e enfrentar os males que surgirem. Ao longo dos acontecimentos, Miyazaki nos faz entender que todos que cometem feitos maldosos ou questionáveis, têm também algo de muito bom e sofrido dentro de si, ou estão em busca de se curarem das marcas de suas próprias histórias.
Na residência de Mahito, junto a seu pai e madrasta, habitam velhas senhorinhas, anciãs que cuidam da manutenção da casa, da comida e da limpeza. Essas personagens, assim como o eremita que encontra Mahito no outro mundo, simbolizam o poder da ancestralidade e da sabedoria dos mais velhos. O menino, ao buscar respostas acerca de sua mãe, encontra laços familiares mais agudos. Miyazaki mescla linhas do tempo e mostra a força do mesmo, através das mulheres que são mostradas como pilares dentro do lar e as passagens de gerações.
Temos a volta das criaturinhas da floresta, como pólens, dessa vez elas são leves e flutuantes, também representadas em outras obras do Miyazaki, estão ali como um abraço nostálgico à sua filmografia e para sinalizar e relembrar que a natureza está viva, mas está constantemente sendo ameaçada pela ação do homem. Em certos momentos podemos identificar como ele se importa em mostrar que há algo de bastante agonizante e pedindo socorro na fauna terrestre. Por exemplo, quando Mahito e a garça imperial encontram outra definhando na sua frente e quando as criaturinhas da floresta se mostram enfraquecidas.
Em O Menino e Garça Hayao Miyazaki nos traz o gosto cativante e envolvente de um herói mirim corajoso, mostrando afeto pelas criaturas da natureza como em Princesa Mononoke (1997) e em Ponyo: uma Amizade que Veio do Mar (2008), que se reconecta com suas ancestralidades para superar as perdas, passar pelo luto e pelos percalços que encontra em sua pequena jornada. Com uma extensa carreira, o último longa de Miyazaki foi há mais de dez anos, quando lançou Vidas ao Vento em 2013. E podemos afirmar, com bastante precisão, que esse é seu melhor trabalho depois do magistral Meu Amigo Totoro (1988), nos fazendo respirar do seu espírito gentil de contar histórias simples que se tornam narrativas incríveis.