Lilith | 2022

 Lilith | 2022

“A Criação está sempre sendo feita, ela nunca está pronta e nunca estará”

Adão e Eva e toda mitologia que envolve esse universo de pecado e criação, postas em um contexto particularmente brasileiro por Bruno Safadi, diretor e produtor carioca que participou de obras de Júlio Bressane como Capitu e o Capítulo (2022) e A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (2023), e que já abordou temas que envolvem religião em seu filme Éden, de 2012. Em Lilith, ele propõe uma releitura dessa narrativa bíblica, unindo a figura de Lilith, deusa originária da mitologia mesopotâmica, ao primeiro par de seres humanos a habitar a Terra, segundo os conceitos da bíblia. Sua lenda influenciou a cultura judaico-cristão, principalmente no início da Idade Média, quando Lilith era vista como a primeira mulher criada por Deus.

 Lilith é “Eva” e Eva é “Lilith”, uma figura feminina forte e poderosa, a mulher que é vista na história como a figura transgressora, a primeira pecadora, a que morde a maçã dada pela serpente. De pronto sabemos que estamos acompanhando o lado feminino na criação do homem (homo sapiens), por uma perspectiva de empoderamento da figura da mulher, aqui representada pela marcante Isabél Zuaa, atriz e performer portuguesa, como Lilith; e por Nash Laila, em uma atuação delicada como Eva. 

Safadi é um homem branco, que coloca com delicadeza e com certo distanciamento que lhe cabe,  a questão feminina com a escolha de uma mulher negra como sua protagonista, usando de elementos bastante experimentais e naturalistas para a realização do longa. O filme abre com uma imersiva sequência de imagens de animais tipicamente brasileiros, como uma enorme serpente que rasteja lentamente cortando a tela, entre outros animais silvestres como tucanos e um cabrito, que virá a ser símbolo de um sacrifício sagrado. O diretor propõe uma construção cênica mística, a partir de elementos bastante naturais, como a sobreposição de imagens de pequenos fungos, musgos, galhos, folhas e vestígios da terra, para harmonizar com o espectro nebuloso da figura de Lilith.

Aos poucos vemos cada vez mais intensamente a mulher que irá provocar a ruptura do que entendemos como Éden, o paraíso mitológico, onde vivem pacificamente dois serem de sexos opostos, até caírem na tentação carnal do sexo. Somos entrecortados por imagens que se expandem como ruídos em tela, a direção opta por usar camadas e texturas como uma espécie de cola que une as partes da narrativa. Artifício que ora cai bem, mas ora parece sem propósito e transforma o longa em uma espécie de filme-ensaio artístico que pode soar um pouco conceitual demais. 

A montagem mescla esses momentos não narrativos, que são mais sensoriais e que talvez tenham a intenção de preencher a obra com uma atmosfera subjetiva para tratar um mito, que, por si só, carrega essencialmente o conceito de subjetividade. O dualismo está bastante presente nas cenas de Lilith, como o retrato do eclipse solar, com um sol brilhante que inunda a tela e ofusca a visão do espectador, e que é em seguida coberto pela sombra da lua. A representação do dia e da noite, da Deusa negra, da Eva branca. A metalinguagem das cores em cenas azuladas e outrora avermelhadas, ajudam a compor os dois lados dessa figura mítica que representa tanto a libertação da mulher perante ao homem, como também a chave que abre as portas para os pecados do mundo e seus males. 

Lilith carece de um aprofundamento no texto do mito, não em palavras, mas na própria essência da exploração imagética de Adão e Eva permeados pela deusa Lilith. A sugestão de uma fusão entre as figuras femininas é abstrata, mas poderia ser mais profunda em termos de representação, assim como a figura de Adão (Renato Góes), como mero representante da masculinidade, que está presente como um acessório para mostrar a influência de Lilith na transformação dos conceitos de bem e de mal, de sagrado e de profano, nessa narrativa que Safadi cria para também evidenciar os males do patriarcado. 

Nota

Lilith será lançado no Brasil pela Pandora Filmes
Leia também a crítica de Leme do Destino, de Júlio Bressane

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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