Ficção Americana | 2023

Ficção Americana | 2023

A análise de sua premissa fundamental faz-nos imaginar que Ficção Americana é mais um dos grandes filmes que viriam muito forte e arrebatariam diversos prêmios no período das grandes premiações do cinema ianque, mas, infelizmente, ele é também mais um dos filmes em que a execução de uma boa ideia fica bastante aquém do esperado.

Dirigido e roteirizado por Cord Jefferson e estrelado por Jeffrey Wright, Ficção Americana traz uma ousadia que sempre é boa de ver em filmes desse tamanho, mas parece que, querendo abarcar uma série de temáticas paralelas a que me parece ser a sua principal, acaba por desarticular-se, montando uma colcha de retalhos que, em determinados momentos funciona muito bem, mas em outros, nem tanto.

A própria apresentação do personagem Thelonious “Monk” Ellison (interpretado por Jeffrey Wright), ainda nos primeiros minutos da obra,parece indicar seu enorme potencial, por assim dizer. Monk é um escritor e acadêmico que, ao apresentar aos seus alunos o conto “The artificial Nigger” de autoria de Flannery O´Connor, é interpelado por uma aluna branca sobre a utilização do pejorativo termo usado. Nem a explicação de que aquela era uma aula sobre a literatura do sul dos Estados Unidos que trazia certos pensamentos antiquados e nem o fato de Monk ser negro, evitaram com que a direção da instituição de ensino o repreendesse e, posteriormente, o obrigasse a ficar longe da docência por um tempo.

Esta cena, posta tão logo no início da trama, já faz com que haja uma grande expectativa do porvir, afinal, de forma elegante e bem escrita, aborda, mesmo que indiretamente, alguns temas ainda bastante discutidos, como o uso de termos problemáticos em obras literárias escritas há muito tempo (no caso brasileiro, se impõe a referência à obra de Monteiro Lobato), mas, acima de tudo, uma incitação à reflexão do próprio esvaziamento de pautas tão relevantes como o racismo, a partir de uma pretensa defesa das ideias de diversidade e respeito entre as pessoas, mas trazendo, na realidade, pouquíssima consciência racial e até mesmo desconhecimento sobre a temática. 

O egocentrismo do personagem principal mostra-se aflorado quando julga, sem dó, trabalhos de colegas escritores, sejam eles brancos ou negros. Convidado a um evento literário, acaba por retornar à Boston, cidade em que sua família vive, o que não parece ser algo que lhe agrade. A relação que possui com seus irmãos e sua mãe parece ser tão gélida quanto a capital da Nova Inglaterra.

Um trágico incidente faz com que Monk tenha que permanecer em Boston e passar a cuidar de sua mãe, já acometida pelo Alzheimer. Ao mesmo tempo que toma consciência de todas as responsabilidades que passaria a ter nesta nova situação, também parece ter consciência de que tal trabalho era feito, na sua ausência, por outra pessoa, sem que se desse conta das imensas dificuldades, sejam emocionais ou financeiras.

É na medida em que o filme migra para este drama familiar, que parece se desconectar com o que lhe confere maior força. Monk passa a ter uma relação conflituosa com seu irmão Cliff  que sempre se exime de ajudar sua mãe, engata um relacionamento com uma vizinha e revive uma relação de carinho e parceria com a governanta da casa de sua mãe, com quem já tem uma longa e amigável relação.

E a partir daí, percebe-se que o filme oscila entre dois lugares: o que revela a face de Monk como escritor, suas dificuldades de lidar com o mercado editorial, suas frustrações e conflitos (internos e externos); e o seu drama familiar, com sua mãe padecendo de Alzheimer, a falta de dinheiro para oferecer um tratamento adequado e o desinteresse do seu irmão em ajudar com todos estes problemas familiares.

Ainda que se aborde a não aceita homossexualidade de Cliff pelos seus pais, a degradação da saúde mental de sua mãe e o desgaste da relaçaõ amorosa do protagonista, tudo parece enfadonho e desatrelado  do que considero um dos pontos altos do filme, que são permeados por uma divertida metalinguagem e uma refinada sátira que estão, em sua esmagadora maioria, no contexto das frustrações do protagonista enquanto escritor na atualidade.

Soa bastante interessante o conflito interno do personagem que  decorre do fato de que, quando escreve obras de fôlego, é um fracasso de vendas, mas quando dedica-se (usando um pseudônimo) a escrever um livro com “temática negra” aos olhos do público, recheado de drogas, tiros, polícia e mortes, criando uma obra em que usa, conscientemente, toda sorte de estereótipos raciais, passa a ser um grande sucesso de vendas e crítica.

Tão envergonhado por ter escrito um livro especialmente focado no que o mercado editorial deseja, ele acaba por usar um pseudônimo e seu editor inventa-lhe uma persona: o autor do best-seller não pode aparecer porque é um fugitivo da polícia, o que aguça ainda mais o interesse do público e aumenta número de vendas.

Nesse contexto, absolutamente entristecido com o rumo dos acontecimentos, Monk profere a frase que parece ser o grande mote do filme e a sua crítica essencial: “quanto mais burro eu sou, mais rico eu fico”.

Em suas tentativas de auto-sabotar-se (e ao seu livro), Monk declara querer mudar o nome de sua obra para “Fuck”, no que os editores surpreendentemente aceitam, não lhe dando outra alternativa senão aceitar o grande sucesso daquele livro que, propositalmente, escreveu para ser o seu pior.

Aqui, há críticas para todos os lados: aos brancos que querem ter, no livro, um bálsamo; aos críticos que fazem uso de jargões que são, na mesma medida, vazios e bastante conhecidos; aos prêmios literários que, tendo seus júris, na maioria das vezes, compostos na sua maioria por brancos, acabam por premiar justamente obras que fortalecem estereótipos; as obras feitas com o único fim de agradar os jurados das grandes premiações (e aqui, nem o Oscar escapa, o que é bem engraçado ao se pensar que o longa concorre ao Oscar de melhor filme). 

Nem mesmo autores negros são poupados pelo protagonista, o que confere uma faceta ainda mais mordaz às críticas: há uma certa rivalidade entre Monk e Sintara Golden (interpertada por Issa Rae), escritora negra que é sucesso de vendas e que lota auditórios para lhe ouvir. 

A relação entre ambos é construída de forma bastante inteligente, pois na mesma medida que os aproxima a partir de suas vivências enquanto pessoas negras, também mostra Monk absolutamente inconformado com o fato de Sintara ser negra e produzir o tipo de literatura que mais despreza, a que reduz os negros a um cenário de pobreza e violência.

 Em uma cena em que ambos discutem de forma especialmente elegante, Monk argumenta que a obra de Sintara é destinada a “editores brancos que tem fetiches por traumas de negros” e que há um imenso potencial desperdiçado pelos negros ianques, no que Sintara desarma “seu oponente” ao indagar “se eles compram os manuscritos, é um problema atender ao gosto deles? – eu dou ao Mercado o que ele quer”. 

É notável a beleza dessa discussão, sobretudo por não ser contaminada com noções morais e ainda mais por “não ter um vencedor”, principalmente porque o diretor nos apresenta Sintara, mulher absolutamente inteligente que é, completamente consciente de suas escolhas e lidando de forma muito segura com elas.

 Nem mesmo as muito competentes atuações de Jeffrey Wright, Issa Rae e Erika Alexander e a agradável acidez do roteiro fazem com que a desconexão entre a sátira certeira e o (cansativo) drama familiar não retire boa parte da força de Ficção Americana e, sobretudo, desfaça a sensação de que o filme poderia ser muito mais potente do que conseguiu ser. 

Nota:

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