Favoriten | 2024

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A Áustria, assim como diversos países europeus com políticas que abrem suas portas para a imigração, recebe pessoas do mundo todo em tal condição, e isso inclui crianças, que, tal como seus pais, precisam, por algum motivo, deixar seus países maternos e buscar na Europa uma vida de melhores oportunidades. Especificamente em Viena, 60% das crianças que estudam nas escolas elementares não falam o alemão como língua primária. Isso significa, consequentemente, que futuramente a capital austríaca abrigará uma população majoritariamente imigrante. Ruth Beckermann, diretora do ótimo Mutzenbacher, acompanhou, por três anos, uma específica sala de aula de 25 crianças e sua professora, sendo esse o material de seu novo documentário, Favoriten, nomeado em referência ao bairro vienense multicultural onde a escola fica localizada.

Síria, Turquia, Macedônia do Norte, são alguns dos países que se encontram naquela sala de aula. As crianças, com seus aproximados 10 anos, ainda estão aprendendo a falar alemão, e vêm de lares onde seus pais, por vezes, não se comunicam em absolutamente nada no idioma falado na Áustria. A dificuldade de expressão dos alunos e alunas é suprida pela professora, que assim como eles, é uma imigrante. Mais do que ensinar a língua, a professora, que concentra todas as matérias, carrega o desafio de unificar aquelas pessoas em construção, cada uma transportando dentro de si costumes, culturas, religiões e visões de mundo diversas. Discussões como “mulheres não podem andar na rua sozinhas porque serão raptadas”, ou “homens devem escolher as roupas das mulheres” são levadas para a sala de aula, e é dever da docente transformar aquilo em aprendizado coletivo, dialogando abertamente a respeito das diferenças entre os países e questionando manifestações eventualmente conservadoras, sem se incomodar com o que é ensinado nas famílias e lares de cada um, estimulando, dessa forma, o pensamento crítico.

A religião e suas influências é o fator que mais evidentemente torna necessária uma abordagem mais coletiva. A maioria das crianças é muçulmana, e muitos são os pais que não autorizam que seus filhos e filhas frequentem as aulas de religião. Naquele contexto, essa aula vai levar crianças a conhecer tanto mesquitas como igrejas católicas, muito embora ali não houvesse um aluno cristão sequer. Aliás, o método de ensino parece-nos diferenciado em muitos aspectos. Além do estímulo ao pensamento próprio e crítico, que coloca as crianças a questionar seus próprios costumes, os alunos e alunas não permanecem o tempo todo sentados em suas cadeiras, pratica-se o exercício da escuta e da expressão de opiniões, da meditação, incentiva-se a conciliação e a solução conjunta de conflitos, dá-se liberdade para que o corpo fale através da dança como bem se entender. As cenas de dança são, inclusive, adoráveis, geralmente iniciadas com certo constrangimento, para transformar-se numa diversão deliciosa de se ver, cada qual com seu próprio jeito e cultura.

A presença de Ruth Beckermann na sala de aula certamente causou alguma interferência, mas ao manter uma câmera respeitosa, percebemos que ela conseguiu exercer o papel de uma terna observadora, que capta a doçura das crianças mantendo a distância necessária ao aprendizado, e fazendo também do ato de filmar uma lição. Três anos é tempo mais que suficiente para que elos e conexões se formem, e a intimidade e o conforto das crianças com a câmera vai ficando tão natural que ouvimos a voz da diretora conversando com um aluno que a procura para um bate-papo.

“O que é cultura?”. Num ambiente que acolhe dezenas de alunos de nacionalidades diversas, o que significa a cultura? Ruth Beckermann, que através de seu projeto propõe às crianças que façam seus próprios documentários, filmes menores que integram o principal, ela provoca com seu questionamento. “Cultura é quando você não dança qualquer dança, mas a dança específica do seu país e religião”, é a resposta insistente de um menino, que com a mesma simplicidade que transparece em sua resposta, consegue definir muito da beleza de Favoriten

A imigração muitas vezes é motivada por algum tipo de conflito no país de origem que desafia a qualidade de vida e a sobrevivência. Portanto, naquela sala, há quem já tenha presenciado algum contexto de guerra, o que torna o assunto, invariavelmente, necessário na sala de aula. Quando um garoto responde que acha “ok” que uma pessoa agrida um estranho sem motivo, a professora não hesita em questionar a resposta e extrair, dali, um debate saudável, mas sem deixar de repreendê-lo. 

Nos filmes produzidos pelas crianças, os assuntos são os mais diversos. Cantar a trilha sonora de Encanto, andar de patinete na rua, discutir sobre casamento e filhos, brincar de fazer escolhas como “pai versus mãe”, ou “amiga versus mãe”, ou mesmo “Deus versus mãe”, causando uma pequena confusão porque se escolhe a mãe em todas as opções. A diretora, além de colocar o material das crianças em seu documentário, faz imagem também delas fazendo seus filmes, e se divertindo (muito) com tudo aquilo.

Fato é que crianças são interessantes por si só, e emanam naturalmente uma graça inocente que Ruth Beckermann soube exatamente como utilizar, sem apenas reproduzir aquilo que nos faz ver, mas imprimir em tudo, com delicadeza, sentimentos contrastantes de dúvida e esperança, permanecendo aquele que aquece o coração. Em Favoriten, na maior escola elementar de Viena, nesse contexto tão específico de diversidade que é essa sala de aula, futuros adultos tão diferentes uns dos outros aprendem a ser comunidade. 

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