Grand Me | 2024

Grand Me | 2024

O abandono parental é algo que já se mostra difícil em qualquer cenário, seja quando é feito com um bebê, comumente visto na sociedade pela lacuna paterna, onde a mãe é deixada com um filho para criar sozinha, ou com uma criança mais velha. Porém, como se apresenta em “Grand Me”, documentário iraniado dirigido por Atiye Zare Arandi, a forma como absorvemos esse abandono é construída aos poucos e mostrada por uma perspectiva bastante dolorosa, a da própria criança. 

Melina é uma menina entrando ainda na pré-adolescência e vive na casa de seus avós maternos no Irã. Ela tem seu próprio quarto, decorado com uma colcha com tema do Garfield, penteadeira e bonecas. Somos apresentados ao ritual de passagem que é celebrado em conjunto quando uma criança atinge seus 9 anos, como uma aniversário coletivo entre meninas. Essa cerimônia é registrada pela câmera de Arandi, que além de diretora estreante, é tia de Melina. Aos nossos olhos ocidentais, uma criança nessa idade ainda é uma simples criança, mas parece que no país asiático ela já é encarada com mais maturidade e tratada de forma a se comparar com adultos. Em países como o Iraque, já se discute  redução da idade de casamento de meninas de 18 para 9 anos. No Irã a idade mínima é de 13 anos. 

Se formos analisar pelo viés do dia a dia de Melina, ora registrados por ela mesma, ora por sua tia, que planta câmeras estrategicamente pela casa que a menina vive, vemos uma criança carente, mas que manifesta suas angústias pela falta de sua mãe e de seu pai de forma contida e muitas vezes fria. Não vemos em momento algum Melina chorando e esperneando como uma criança faria, ela, porém externa com sobriedade a falta que sente e não poupa palavras para se expressar diretamente com sua mãe. Sua progenitora está ausente, quase o tempo todo. Divorciada, decide ir viver na Turquia com o novo marido e é importante contextualizar que na lei iraniana, a mulher é tratada como propriedade de sua família. Nas localidades mais tradicionais, os casamentos são arranjados, e sexo antes do casamento é um dos motivos que podem levar à morte de uma garota. Uma mulher que se separa não é vista com bons olhos pela sociedade. Logo, inicia-se assim o drama que quebra por completo a vida de Melina.

Seguindo a mesma trajetória de sua mãe, o pai de Melina também casa-se novamente e vive separado de sua filha. A comunicação entre os três é sempre separada e através, principalmente, de ligações telefônicas. É bastante angustiante ver a mãe tentando uma comunicação que não consegue se sustentar a distância e a filha mostrando veementemente a solidão que sente. Mais do que sua solidão, Melina expressa uma enorme desconexão, cada dia mais os laços sanguíneos que unem mãe-pai-filha são apagados. Embora a menina tenha vontade de ir morar com sua mãe na Turquia, depende de uma carta de aprovação de seu pai para que isso aconteça. Ela é obrigada a manter laços com o pai e com sua nova esposa, que, ao que tudo indica, não recebe bem as visitas de Melina.

É constantemente um massacre sentimental, registrado por um ato que parece um pedido de socorro da tia de Melina, que recorta a micro realidade infantojuvenil da sobrinha que tenta existir em meio a uma família que a rejeita. Essa rejeição da família unida às leis patriarcais e sexistas do Irã, se tornam um coquetel ainda mais cruel. As posições de câmera são, por vezes, incômodas, estão  estrategicamente postas para acompanhar os diálogos dos avós de Melina, das breves visitas de sua mãe, como se nem sempre fosse natural o que estamos assistindo, mas sim uma forma de construir a narrativa que está sendo mostrada e denunciada. 

Quando Melina está só em seu quarto, ou em sua pequena sacada com vista pra rua, é que vemos a menina mais fragilizada e cada vez mais consciente de que o único amparo afetivo que recebe é o de seus avós. Grand Me exterioriza o olhar infantil da menina que passa por problemas muito duros de serem enfrentados por uma criança em fase escolar, seu esforço para se manter nos estudos, sua luta para conciliar seus conflitos internos com o fio frágil que ainda a aproxima de sua mãe. 

Em conversas dentro do carro, que vemos através de registros da câmera interna do veículo, Melina está sozinha com sua mãe, que, enquanto dirige, é massacrada por indagações e cobranças da menina como “quem mandou você se casar de novo?”, “eu já tenho um pai”. Ao passo que sua mãe, que vive longe por ter se divorciado e alega também não ter levado Melina por falta de condições financeiras, diz para a filha “eu não tenho direito de recomeçar a minha vida?”. Esse drama tem mais de um lado, e somos apresentados a dois deles. A forma como Arandi escolhe nos contar deixa de fora, porém, a perspectiva do pai de Melina, que parece mais inacessível pela tia.

Como um diário, a menina é orientada a filmar seus dias, esses registros, unidos ao olhar crítico de sua tia,  compõem Grand Me e fazem dele um documentário que atravessa dores muito pessoais, por um ponto de vista de um dos membros da família envolvida. Como bem disse Kleber Mendonça Filho em seu “Retratos Fantasmas”: “todo documentário é uma ficção e toda ficção é um documentário”. Passando por um processo judicial por sua custódia e por um processo de amadurecimento interno, Melina toma todo o tempo de reflexão para si e expressa para as câmeras como o mais importante na sua vida é, estar onde ela possa se sentir verdadeiramente acolhida.

Nota

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