Fernanda Young – Foge-me ao Controle | 2024
Fernanda Young, no meio do deserto do Atacama, não queria ouvir explicações do guia turístico chato. Queria se conectar com a natureza, se integrar àquele ambiente rarefeito, frio e inóspito. Esse é o primeiro recorte de imagem que Susanna Lira trabalha para iniciar a poesia experimental e imersiva Fernanda Young – Foge-me ao Controle. Um recorte absolutamente caseiro, que vai se juntar a todos os outros autorretratos imagéticos da artista, imagens sobrepostas da obra e da autora, desenhos de um caderno que registra uma vida não de forma linear, mas tão lindamente caótica, anárquica e labiríntica como o próprio raciocínio de Fernanda, imparável e fluído.
A estrutura dessa obra biográfica é, de fato, conduzida pela própria Fernanda Young. Falecida em 2019, a escritora e roteirista deixou um vasto e riquíssimo material, grande parte dele em suas obras feitas para a televisão, inspiradas, de alguma forma, nela mesma e suas experiências. Os Normais, Saia Justa, A Comédia da Vida Privada, são algumas de suas criações mais populares. Para além do que escreveu para a TV, livros, poemas, diários, manuscritos da adolescência, figuras desenhadas, ensaios como modelo e vídeos amadores compõem essa imensidão criativa de Young, tudo organizado por Lira para deixar que a voz da artista fale de si mesma.
Fernanda Young – Foge-me ao Controle é um fluxo contínuo de pensamento cujo fio é costurado pela diretora com uma estética vintage, muito feminina e física, expressão daquilo que foi Young, que falava com clareza por suas palavras e seu corpo, vestimentas, tatuagens e cortes de cabelo. Lira parte de trechos de filmes mudos para compor essa estética expressiva, e sob uma música sideral, sobrepõem o cinema mudo e do expressionismo alemão com imagens da escritora, com anotações e desenhos que se fazem na tela, letras embaralhadas por sua dislexia, e a narração de sua personalidade pelas histórias que ela mesma contava.
Não há interesse em contar um passado de acontecimentos de Fernanda Young, mas de transcender sua personalidade pela representação das imagens, com distorções que elevam sua figura a um patamar que alcança o etéreo. São aspectos específicos de sua pessoa que nos fazem mergulhar num fascínio absoluto por ela. Sua narração sobre as nuances de uma música tocada ao piano, com “pausas de nada e a sensação de tristeza leve”, o punk dos anos 80 que fizeram sua fase anárquica, junkie e doidona, sua obsessão mórbida por Christiane F., seus traumas, sua parceria de escrita com o marido desde os 16 anos, a falta de pontuação de sua escrita, a curtição da maternidade e a deixa para discutir gênero e feminismo, o fato dela dizer fazer poemas antes mesmo de aprender a escrever. A costura de tudo isso, sem o apego a uma visão única e sem julgamentos, com o viés experimental de Susanna Lira, cria um lugar seguro e perene para que Fernanda Young habite e se mantenha viva.
“Quero ser livre, mas visto-me de noiva”. Um lindíssimo ensaio fotográfico da artista vestida de noiva, defronte ao mar, para em seguida despir-se, é uma metáfora interessante que ela mesma faz para si. Vestir-se de noiva é preparar-se para o outro, é estar bela para o outro, e o contraponto do despir-se é o que ela chama de nudez egocêntrica. A noiva é o símbolo do que é puro, e a nudez expõe o que está por trás dessa pureza. Essa é a Fernanda Young honrada por Susanna Lira, num filme de melancolia doce e tristeza leve, sobre um ser humano honesto, um livro absolutamente aberto, e por isso, pura, em sua forma mais sublime.