La Chimera | 2023

La Chimera | 2023

Arthur (Josh O’Connor) é um personagem errante, não apenas fisicamente, mas sempre vagando entre suas memórias. Seu grande amor, Beniamina (Yile Vianello), não existe mais no presente, mas habita seus sonhos, sua utopia, sua quimera, quando iluminados pelo sol. Por mais bem guardados que estejam nossos sentimentos antigos, um feixe de luz pode reanimá-los. É como a lanterna do arqueólogo que ilumina tumbas milenares e faz renascer histórias que na verdade nunca saberemos por completo. Que valor têm aqueles objetos agora? A cada um pertence o seu passado e suas dores. La Chimera é mais uma poesia de Alice Rohrwacher, uma arqueologia do amor que traz seu já característico estilo de humor, drama e fantasia.

Após um tempo na prisão, Arthur retorna para seu vilarejo, onde se vê obrigado a confrontar-se com seu passado. Ele foi o líder de um grupo de exploradores clandestinos, ladrões de tumbas em busca de artefatos valiosos enterrados na história da Itália. Dotado de poderes misteriosos, pressente quando algum lugar guarda as preciosidades que procuram. Por mais que, a princípio, evite retornar à sua antiga tarefa, Arthur é envolvido pela necessidade de subsistência, não só dele, mas também de seus colegas que precisam de suas habilidades para ganhar algum dinheiro. Todos vivem em uma região pobre do litoral italiano, o próprio Arthur sai da prisão sem nada, fora o terno branco e abarrotado no corpo. Logo, eles voltam às escavações e ao contrabando de antiguidades.

Esse movimento serve como metáfora interior de Arthur. Uma história de amor que nunca conhecemos por completo, parece ter sido relegado a um limbo de nostalgias. Ele pouco se importa com sua aparência ou sua saúde. São quase inexistentes seus momentos de alegria, mesmo que rodeado de peculiares e divertidos amigos. Rohrwacher não precisa localizar claramente as dores de seu personagem no contexto narrativo, isso porque podemos senti-las de muitas maneiras.

Essa renúncia ao didatismo aumenta a potência poética do filme que, mesmo nos entregando pouco sobre Beniamina, nos faz sentir a energia de sua presença onírica e espiritual durante toda a projeção. Quando ela aparece no imaginário de Arthur é para reforçar as simbologias do filme, seja pelo sol tatuado nas costas e presente nos cenários a sua volta, ou pelo fio vermelho de sua roupa que liga passado e presente. “O sol está aqui”, diz Beniamina, como se afirmasse que a luz lhe dá forças para existir na memória do rapaz. É o mesmo sol que atinge as paredes de um dos túmulos abertos por Arthur e sua gangue, e, ao iluminá-las, faz barulho de algo queimando, uma história sendo desvelada de um passado até então intocado, o tempo perdendo sua mística e assumindo um novo papel.

O valor que a cineasta dá aos rostos tem, ao mesmo tempo, força e delicadeza, estabelecendo mais uma forma poética de evidenciar as aflições de cada um. O olhar envergonhado de Arthur, que muitas vezes desvia de encarar quem o cerca, só é alcançado pela sutileza que Rohrwacher impõe à sua câmera. Atores como O’Connor e a brasileira Carol Duarte, que interpreta Italia, são capazes de exibir a profundeza de seus papéis simplesmente na forma como seus olhares são enquadrados. Ambos perdidos, começam a se encontrar justamente por miradas encabuladas que vão crescendo (ou se “desenvergonhando”) até que um laço entre os dois seja criado com naturalidade.

Italia é uma personagem complexa, e vale darmos destaque para a atuação brasileira rompendo fronteiras. Duarte consegue dar um ar de inocência a seu papel, a doçura que acaba conquistando Arthur. Vivendo na casa de Flora como sua aluna de canto (mas, na verdade, com a função de empregada), Italia é uma imigrante brasileira que parece ter escolhido a Itália como refúgio de sua condição no país tropical. Ainda que não seja a vida dos sonhos, ela age sempre com gratidão, tira forças de si e das mulheres que a cercam para resistir. Esconde um segredo que também é o que a move, sempre com um olhar otimista. Há uma belíssima cena na qual ela dança em uma festa de rua e que podemos notar sua força e sua energia emanando até o melancólico Arthur.

Um dos rostos mais familiares em La Chimera talvez seja o de Flora, ilustre participação de Isabella Rossellini, a mãe de Beniamina, portanto sogra de Arthur, que o acolhe, mas nega a passagem do tempo. Ela se prende à memória da filha, aguardando seu retorno, negando sua morte e regozijando-se com a volta do genro. Flora não enfrenta suas dores, mas finge que elas não existem, como se o tempo não tivesse perpetuado sua perda. É o contraponto de Arthur que a cada passo é engolido pelo passado.

Assim como em Lazzaro Felice (2018), filme sobre o qual escrevemos anteriormente aqui, a diretora italiana tem um apego com o fantasioso, mesmo que em La Chimera seja menos evidente. Há toda uma mística que habita as dualidades da Itália, lugar de riqueza histórica, mas também de pobreza periférica. Não interessa à diretora as grandes metrópoles, mas os vilarejos carregados de segredos, ruínas e tesouros, e todo processo exploratório colocado sobre eles. A vida rural italiana é o ambiente propício para o engrandecimento dessa magia. Aqueles que trabalham na terra vivem em lugares que não foram desenvolvidos aos moldes da economia atual, entretanto, carregam o peso da História. Aquelas paredes desgastadas, prestes a cair, dizem coisas que nunca seremos capazes de ouvir, e isso é o que Rohrwacher traz para seu filme.

Ambientado na bela Toscana, território onde viviam os povos etruscos, conhecidos por sua vasta produção de artesanatos, metais e jóias, a jornada melancólica de Arthur converge com a daqueles que ali habitavam. A cultura etrusca, seus templos e necrópoles, foi sendo enterrada pelo processo de “romanização” na construção da Itália. Em uma das cenas chaves do ato final do filme, vemos que um grande porto foi construído sobre as ruínas da mística dos etruscos com a morte. É por isso que percebemos uma pergunta por trás de toda narrativa de La Chimera, a mesma comentada por Spartaco, personagem de Alba Rohrwacher: “como estimamos o inestimável?” O valor que antes foi incumbido a um túmulo, agora é o solo do capital de um novo sistema de vida.

Então, quantas histórias já soterramos? O tempo naturalmente faz esse trabalho. Arthur demora a perceber isso, mas seu amor também ficará enterrado ao fim da projeção. Talvez algum arqueólogo possa desenterrá-lo algum dia, mas nunca terá o mesmo valor que certa vez teve, pois ele é inestimável. La Chimera, de Alice Rohrwacher, promissora cineasta italiana, é uma exaltação ao Tempo, ele que se tornou sinônimo de capital, perdeu sua mística, mas permanece imbatível às dores do mundo.

Nota:

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