Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha: 6 filmes e uma reflexão

Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha: 6 filmes e uma reflexão

A escassez do consumo de cinema negro e feminino

Em março de 2024, as mulheres do Coletivo Crítico, Mari Dertoni e Natália Bocanera (que vos fala) reuniram nomes de críticas, pesquisadoras e atuantes na produção de conteúdo de cinema no Brasil, para revelarem quais são, em suas visões,  os cinco melhores filmes dirigidos por mulheres em todos os tempos. Como forma de conscientização à celebração do dia da mulher, nosso objetivo foi prestigiar, privilegiar e dar o devido destaque ao cinema realizado por mulheres, através da visão de outras mulheres, ainda que de forma mais ampla. Assim, a crítica feminina elegeu os Melhores Filmes Dirigidos por Mulheres em Todos os Tempos, votação e lista que você encontra aqui.

Com o resultado, foi possível compreender um pouco melhor sobre o direcionamento de nossos olhares no cinema feito por mulheres, principalmente, no que diz respeito à representatividade racial.

Dos TOP 25 selecionados após a apuração dos votos, três foram dirigidos por mulheres negras. São eles:

  • The Watermelon Woman | dir. Cheryl Dunye  (EUA, 1996) – 6º lugar
  • Eve’s Bayou | dir. Kasi Lemmons  (EUA, 1997) – 17º lugar
  • Sambizanga | dir. Sarah Maldoror (Angola/França, 1972) – 23º lugar

De todos os filmes votados, considerando os votos individuais de cada participante, surgem mais três:

  • Atlantique | dir. Mati Diop ( Senegal/França/Bélgica, 2019) 
  • Selma: Uma Luta pela Igualdade | dir. Ava DuVernay (EUA, 2015)
  • A 13ª Emenda | dir. Ava Duvernay (EUA, 2016)

Ao todo, as 23 críticas participantes votaram em 62 filmes. Destes, somente 6 são dirigidos por mulheres negras, ou seja, algo próximo a 10% dos selecionados. Outras obras votadas, como Born in Flames e Retrato de Jason, carregam a temática racial, mas são filmes dirigidos por mulheres brancas. O cinema africano, que faz parte de um universo tão amplo, foi representado por apenas dois filmes: Sambizanga e Atlantique, ambos coproduções europeias, necessidade herdada do colonialismo, já que, em linhas gerais, muitos colonizadores, como a França, proibiam a produção cinematográfica em suas colônias como forma de dominação, razão pela qual o cinema no continente é tardio e carece, via de consequência, de investimento. As demais produções lembradas são estadunidenses, sendo duas delas dirigidas pela mesma pessoa, Ava Duvernay (Selma: Uma Luta pela Igualdade e A 13ª Emenda). 

Mesmo em nosso meio, que é especializado e recortado pelo gênero, o cinema feito por mulheres negras é pouco lembrado. Não precisamos dizer e nem lembrar o quanto isso é sintomático de um passado de apagamento histórico e cultural estratégico, seja pela escravização de pessoas negras, seja pela colonização, que ditou normas sociais e formou padrões de consumo: racismo em todas as suas formas.

Tomemos como exemplo o próprio Brasil. Segundo o projeto Cinemateca Negra, mapeamento realizado pela Cinemateca Brasileira e que objetiva o resgate desse passado apagado aqui mencionado e do passado da cultura brasileira em geral, 83% dos filmes de cineastas negros viriam após 2010. Foram oito meses de trabalho sob liderança de Heitor Augusto, autor do livro, com mapeamento de 1086 longas, médias e curtas com direção negra entre 1949 e 2022. De todos os filmes mapeados, 12% são longas-metragens, 84% curtas e 4% médias, sendo 43% documentários, 38,5% ficções, 13% experimentais, 2,8% animações e 2% híbridos.

Na divulgação dos resultados preliminares da pesquisa, que será impressa e acessibilizada ao público, Augusto bem pontua: “A super-representação da direção negra nos curtas e a subsequente sub-representação nos longas indica a dificuldade  encontrada por talentos negros para acessar postos de maior prestígio, como a direção de um longa. As raízes do problema são profundas e o audiovisual, apesar de tido como campo progressista, reflete com nitidez o racismo estrutural da sociedade brasileira.”

Por outro lado, obras realizadas no Continente Africano, por pessoas africanas, só começaram a aparecer após a “independência” dos países – o colonizador criou uma amarra que até hoje persiste, vejamos, como acima dito, a quantidade de filmes que precisam ser coproduzidos por países europeus. 

O resultado da nossa lista é bastante positivo se comparado a outras votações realizadas por representantes da cinefilia, da crítica e do jornalismo. Tomemos por base os Melhores Filmes da Década de 70, eleitos pela cinefilia brasileira. Entre os 50 primeiros colocados, não há representantes dirigidos por pessoas negras – e estamos falando de tempos de Touki Bouki – A Viagem da Hiena, Ganja & Hess, De Cierta Manera e Sambizanga, para mencionar apenas alguns. Ainda, lembremos da prestigiada publicação da revista Sight and Sound, que elege os 100 Melhores Filmes de Todos os Tempos a cada 10 anos. Em sua última edição, divulgada em 2023, entre os 100 primeiros colocados, apenas 6 são dirigidos por pessoas negras, dentre os quais apenas uma diretora, Julie Dash, com Filhas do Pó.

Em julho, no dia 25, celebramos o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Diante do cenário do resultado de nossa votação, a fim de prestigiar o cinema feito por mulheres negras e gerar conscientização, em continuidade ao projeto iniciado pela lista Melhores Filmes Dirigidos por Mulheres em Todos os Tempos, e ainda, como um ato antirracista, a partir da votação de março de 2024 e considerando os filmes de lá extraídos, vamos listar e destacar os 6 melhores filmes dirigidos por mulheres negras, dentro deste recorte, segundo a eleição da crítica feminina, em ranking obedecendo os mais votados.

Por fim, para o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, não nos esqueçamos de celebrar nomes como Adélia Sampaio, Ruth de Souza, Léa Garcia, Sara Gómez, Viviane Ferreira, Juliana Vicente, dentre tantas outras que fizeram e fazem a história negra no audiovisual latino-caribenho acontecer. Precisamos de narrativas negras plurais, cineastas mulheres negras que não se reduzam a dois ou três nomes, como se fosse suficiente a nossa subrepresentatividade. E que fique claro: não é. 

Os Melhores Filmes Dirigidos Por Mulheres Negras

  1. The Watermelon Woman | dir. Cheryl Dunye  (EUA, 1996)
  2. Eve’s Bayou | dir. Kasi Lemmons  (EUA, 1997) 
  3. Sambizanga | dir. Sarah Maldoror (Angola/França, 1972) 
  4. Atlantique | dir. Mati Diop ( Senegal/França/Bélgica, 2019) 
  5. Selma: Uma Luta pela Igualdade | dir. Ava DuVernay (EUA, 2015)
  6. A 13ª Emenda | dir. Ava Duvernay (EUA, 2016)
  1. The Watermelon Woman | dir. Cheryl Dunye  (EUA, 1996)

É da falta de referência negra e queer no Cinema que Cheryl Dunye, primeira diretora negra e declaradamente lésbica a dirigir um longa-metragem nos Estados Unidos, cria The Watermelon Woman. A diretora, que é também roteirista, editora e protagonista do longa, interpreta a também Cheryl, uma jovem que trabalha numa videolocadora, com dificuldades de se afirmar como cineasta, mas que está trabalhando num documentário investigativo sobre uma atriz negra que atuou em diversos filmes da década de 30, mas que era creditada apenas como watermelon woman.

Cada ato de busca de Cheryl pela história da watermelon woman denuncia as dificuldades do povo negro de construir sua própria história. Nos lembra, a todo momento, a importância de nomear atrizes e atores que assistimos. A busca por arquivos a faz confrontar o feminismo branco versus o feminismo negro, findando na total ausência de materiais ou registros sobre feminismo negro ou sobre pessoas negras.

The Watermelon Woman tornou-se uma obra de reparação, ou, ao menos, uma tentativa de reparação do apagamento da história negra. Dunye usa do Cinema para não só criar sua história, sua identidade, como busca de inspiração e representatividade nas telas, mas a história de todas as pessoas negras que foram sequestradas de seus países e que não têm registros de sua origem. Cria e faz um recorte da história das pessoas negras a partir da sua própria identidade: uma mulher negra, preta retinta, lésbica. As mulheres negras e lésbicas não tinham para onde olhar para se identificar. Cheryl também não. Então, ela abre essa porta.

  1. Eve’s Bayou | dir. Kasi Lemmons  (EUA, 1997) 

A força da ancestralidade feminina atravessada pelo mal estar das aparências que não mais se sustentam, pela representação de uma estabilidade não mais existente, pela masculinidade tóxica que também carrega suas mazelas ancestrais, que soam quase como uma maldição. Eve’s Bayou é o primeiro filme de Kasi Lemmons (Harriet, Fale Comigo), e é um potente retrato de um núcleo familiar em desmoronamento, que acumula traumas e encontra forças de sustento na união das mulheres dali.

Eve (Jurnee Smollett-Bell) é uma garota de 10 anos que testemunha a infidelidade do pai, interpretado por Samuel L. Jackson, que é uma figura presente, afetuosa e bastante conectada às filhas. A quebra de confiança se estabelece e confunde sobremaneira os sentimentos e pensamentos da menina, que compartilha com a irmã o que viu, mas é induzida a desacreditá-lo, em prol da manutenção da estabilidade. Não macular a imagem do pai, que é médico muito conhecido e bondoso, torna-se objetivo da filha mais velha, que vai adentrando nos próprios traumas paternos diante de tais acontecimentos.

A diretora trabalha com sentimentos confusos e morais duvidosas. Nem as crianças, nem os adultos, são perfeitamente bons diante dos conflitos e seu escalonamento e da culpa individual e internalizada que cada uma das personagens carrega. Mantém uma atmosfera dura de mal estar que se alterna a um misticismo estranho, que fazem Eve’s Bayou transitar entre a doçura e o desconforto com muita facilidade.

  1. Sambizanga | dir. Sarah Maldoror (Angola/França, 1972) 

Sambizanga, de Sarah Maldoror, é um dos primeiros filmes africanos a serem dirigidos por uma mulher. Foi realizado, inclusive, numa Angola ainda sob o domínio português. É muito significativa e potente a resistência que esse filme emana simplesmente por existir: uma  produção africana, feita por uma mulher, em pleno período colonial, e que fala justamente sobre a iminência da guerra da libertação (ou da independência). Nos mostra uma Angola de 1961 através de Domingos Xavier (Domingos Oliveira), militante anticolonialista membro do Movimento Popular da Libertação da Angola, e principalmente pelo olhar de sua esposa Maria (Elisa Andrade), que após a captura do marido, parte em sua busca com o filho bebê nas costas.

Com o direcionamento do olhar para Maria, Sarah Maldoror nos faz conhecer a militância feminina inconsciente. Muito embora as mulheres do longa não sejam politizadas e nem integrem diretamente o Movimento Popular da Libertação da Angola, têm um posicionamento definido e formam uma rede de apoio tanto aos militantes como para si mesmas, numa demonstração impressionante de sororidade que é lindamente marcada pela diretora. É potente e belíssimo como em cada momento de fragilidade de Maria forma-se uma rede de mulheres eficientes que se prezam a não só acalentá-la e fortalecê-la, mas a cuidar de seu bebê quando ela não se mostra capaz de fazê-lo. Há uma compreensão silenciosa e uma força que faz brotar desse silêncio que torna a protagonista capaz de seguir sua jornada. Esse movimento coletivo é que sustenta a resiliência de Maria na luta.

  1. Atlantique | dir. Mati Diop ( Senegal/França/Bélgica, 2019) 

Atlantique consegue reunir muitos gêneros. Estreia de Mati Diop na direção de longa-metragem, a ideia do filme vem despontando desde 2009, quando a diretora realizou um curta-metragem de mesmo nome tratando da imigração ilegal através da história de alguns amigos. Aqui, o protagonismo é de Ada (Mame Bineta Sané), uma jovem prometida a um homem rico, mas apaixonada por Souleimane (Babacar Sylla), trabalhador de uma construtora que levanta um prédio grandioso que parece totalmente deslocado naquele espaço. Diante da falta de pagamento de salários pela construtora, Souleimane e seus companheiros resolvem arriscar a travessia de barco para a Europa, encontrando sua tragédia.

Atlantique engana o espectador quando parece se interessar apenas pela história de amor e sofrimento de Ada. O longa, que carrega uma estranheza permanente reforçada por sua trilha sonora, muda o tom quando no casamento de Ada, alguém vê Souleimane, que já era tido como morto. A partir daí, Mati Diop dá um rumo fantasmagórico e policial ao longa, numa perseguição obcecada da polícia por Ada e de Ada por seu amor.

Para muito além do romance, a diretora aborda com sutileza a crueldade da imigração ilegal e homenageia de forma muito bonita as vítimas dessas travessias, lhes concedendo uma espécie de redenção. 

  1. Selma: Uma Luta pela Igualdade | dir. Ava DuVernay (EUA, 2015)

O longa apresenta com a honestidade e a dureza necessárias a trajetória de Martin Luther King durante os protestos ocorridos na cidade de Selma, estado do Alabama, em 1965, em reivindicação ao direito do registro da população negra ao voto, reiteradamente negado como afirmação de uma política de segregação racial que o estado resistia a abandonar.

Muito embora a importância da figura de Martin Luther King na luta e liderança e movimento negro não só nos Estados Unidos como no mundo todo seja inexprimível, Selma foi o primeiro longa a trazer o ativista como protagonista, interpretado com precisão por David Oyelowo. Após mais de 50 anos da morte do Dr. King, Selma continua sendo a única obra que o expressa com protagonismo.

  1. A 13ª Emenda | dir. Ava Duvernay (EUA, 2016)

A 13ª emenda à Constituição dos Estados Unidos assim o diz: “Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado”. O que Ava Duvernay faz aqui é expor o caráter estrategicamente racista de tal emenda, relacionando o aumento da criminalização de pessoas negras e o encarceramento em massa que possibilita mão de obra forçada e escrava em gigantes corporativas. 

Traçando uma linha histórica e gráfica, que aborda desde a retomada da Ku Klux Khan instigada diretamente pelo filme O Nascimento de  Uma Nação, de D.W. Griffith, até os assustadores números de pessoas negras encarceradas na atualidade, gradativamente fornecendo paralelos entre o crescimento da população carcerária e os acontecimentos de cada tempo, apresenta uma mensagem frontal e direta, sem temer indicar nomes de grandes corporações que se beneficiam com esse sistema.

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