Alegoria Urbana | 2024

Os porquês da infância
Três homens nasceram e passaram a vida toda presos em uma caverna. Acorrentados de costas para a entrada, a única coisa que podiam ver era a parede ao fundo, que, volta e meia, adornava-se com as sombras projetadas do que se passava do lado de fora. Mas, para eles, aquela era a realidade, não havia fora, não havia nada além do que conheciam. Até que, certo dia, um deles se soltou e descobriu a saída, a luz que imediatamente lhe queimou os olhos. Aos poucos, foi se acostumando, foi entendendo que o conhecimento é muito maior do que a escuridão que se habituou. Eufórico, decidiu, então, voltar e contar as boas novas a seus colegas, agora que tinha sentido o prazer da verdade. Nenhum dos dois acreditou no que falava, chamaram-no de louco, alegando que se sentiam bem ali e que não precisavam de nada além das sombras. Terminou frustrado, mas decidido a explorar o exterior, a fazer seus olhos se acostumarem com a luz, mesmo que fosse um processo doloroso.
Essa é uma das histórias mais antigas e populares da Filosofia. Escrita por Platão em seu diálogo A República, a Alegoria da Caverna resume sua teoria do conhecimento, ou seja, afirma que aprender é um processo doloroso, voluntarioso e desafiador. Este acabou se tornando mote para muitos filmes, como Matrix (1999), por exemplo, e também para o espetáculo Chiroptera, montado pelo fotógrafo JR, codiretor de Alegoria Urbana e parceiro de Agnès Varda em Visages, Villages (2017), com o coreógrafo Damien Jalet e o músico Thomas Bangalter, membro do grupo Daft Punk. Os artistas ergueram um imenso palco vertical, ao ar livre, em Paris, para apresentar uma releitura do mito platônico com dezenas de bailarinos, para um público de 25 mil espectadores.
É aí que entra o talento de Alice Rohrwacher, criadora de Lazzaro Felice (2018) e La Chimera (2023), que se junta ao próprio JR na direção de Alegoria Urbana, utilizando de Chiroptera para criar uma nova camada de interpretação sobre a alegoria, trazendo-a para a cidade. O filme acompanha uma das bailarinas candidatas ao show (interpretada por Lyna Khoudri), que, por uma série de acasos, chega atrasada para o teste, e, ainda, está junto de seu filho de 7 anos, Jay (Naïm El Kaldaoui), que, febril, não pôde ficar em casa.
É pelo olhar do curioso e simpático garotinho que os diretores contam sua singela história. Observando tudo, ele se assusta com o enigmático diretor do espetáculo (interpretado pelo cineasta Leos Carax), que lhe conta sobre os prisioneiros da caverna e lhe sussurra ao ouvido o que acontece com aqueles que rompem as correntes. A codiretora já provou ter habilidade em retratar a perspectiva infantil em Le Pupille (2023), fazendo do imaginário infantil a força necessária para sair das sombras e explorar uma outra realidade. Enquanto a mãe se prepara para o teste, é isso o que Jay faz: explora o lado de fora.
A doçura de Rohrwacher encontra a instigante intervenção artística de JR e, juntos, nos propõem o mesmo desafio daquele fugitivo na alegoria da caverna. Há luz do outro lado, e talvez seja a criança, muito mais do que os adultos presos a uma vida tão sistemática, capaz de senti-la. Alegoria Urbana é um curta-metragem que chega a alguns cinemas brasileiros acompanhando o média-metragem Não Sou Eu, de Leos Carax, formando uma excelente dupla inquiridora da realidade, cada uma a seu modo.