Casa de Antiguidades | 2020

Casa de Antiguidades | 2020

Não é nenhuma novidade que há alguns anos o Brasil vem ganhando cada vez mais contornos de ódio. Discursos racistas, segregativos, homofóbicos, misóginos e fascistas resolveram sair dos esgotos e habitar nosso cotidiano. Esse projeto se tornou ainda mais concreto quando ganhou poder político e, com isso, maior visibilidade e apoio. Nas redes sociais o que se vê é a exaltação da opinião e o desapego do senso crítico. Muitos defendem com orgulho seus preconceitos alegando “liberdade de expressão”. Infelizmente, a violência tem se tornado comum em nosso país, em suas múltiplas faces.

Em 2022, o movimento separatista “O Sul É Meu País” comemorou 30 anos de existência. Para eles, a região sul do Brasil deveria ser independente, devido  às suas diferenças culturais e sua capacidade econômica. De fato, a peculiaridade sulista é a presença de uma cultura muito mais europeizada pelos processos colonizadores, que trouxeram povos da Alemanha, Holanda e Itália, além dos açorianos. Porém, o ideal de separação vive 30 anos de fracasso. Seus ideais fomentam a xenofobia dos povos brancos, descendentes dos europeus, que se colocam como superiores ao restante do país devido a sua linhagem.

Casa de Antiguidades, primeiro filme do diretor e roteirista João Paulo Miranda Maria, é um retrato do que foi escrito acima. A história acompanha Cristovam, interpretado pela lenda viva Antonio Pitanga, um idoso, negro e nordestino, que veio de Goiás para trabalhar em uma leiteria de donos austríacos no sul. Com poucos minutos de projeção somos apresentados ao que isso realmente significa. Em uma conversa com um diretor da empresa, Cristovam é informado de que seu salário irá diminuir, ainda que faça parte da “família” Laticínio Kainz há 20 anos. É interessante e assertiva a escolha de Miranda Maria em fazer do burguês um sujeito incompreensível ao velho funcionário, já que se expressa quase que totalmente em alemão. Quando Cristovam pergunta se existe alguma outra alternativa para seu emprego, o executivo responde: “perder seus benefícios”. Então, o trabalho continua.

Solitário e melancólico, Cristovam é claramente um estranho no ninho. O lugar onde vive é um vilarejo tradicionalista onde pouco se fala português. Ele é um dos únicos negros ali. A produção do leite funciona como metáfora do embranquecimento, muito bem ressaltado pela fotografia de Benjamín Echazarreta que faz questão de explodir o branco na tela. Nas primeiras cenas, esse efeito coloca o espectador diante de um cenário quase distópico. Os trabalhadores vestem uma roupa parecida com as de astronautas; há grandes tonéis em alumínio reluzente e máquinas; um pequeno furo na luva de Cristovam parece abrir caminho para uma contaminação. Realmente, o que o espectador verá na sequência é a contaminação do personagem por toda a violência de seu contexto.

A construção da narrativa é feita nos mínimos detalhes, desde os olhares inquisitórios sobre o homem negro e nordestino, até frases escritas nas paredes da casa de antiguidades que hoje são reconhecidas como slogans dessa política de ódio no Brasil. Crianças não têm escrúpulos ao atirarem com uma espingarda de pressão no cachorro de Cristovam e depois nele mesmo, como se estivessem sendo educadas a ações desse tipo. A outra personagem negra é a jovem Jennifer que passa grande parte do seu tempo no bar da cidade, obviamente, recheado de descendentes austríacos, abrindo espaço para uma abordagem sobre o racismo e sua violência sobre o corpo feminino.

Em meio a sua solidão na hostilidade do lugar, Cristovam vai se tornando cada vez mais resistente. Ele reage aos invasores de sua casa, toca seu berrante no bar, mesmo que ainda sem muita habilidade, mas, com o tempo, fica calejado. Logo, o som do berrante ecoa perfeitamente pelo campo. A casa de antiguidades guarda peças que retomam a cultura boiadeira e negra do velho trabalhador. Aquele sujeito até então despersonificado vai aos poucos se vestindo de si, recuperando sua identidade.

A obra de João Paulo Miranda Maria vai se tornando cada vez mais alegórica, lembrando os trabalhos de Apichatpong Weerasethakul, inclusive no ritmo lento da câmera. Assim como o cineasta tailandês, que sempre introduz em seus filmes uma cultura mística e religiosa de seu povo, o brasileiro também o faz em Casa de Antiguidades. Vale também destacar a atuação de Antonio Pitanga que, diferente de sua habitual irreverência e alegria, incorpora a solidão de Cristovam com muita seriedade. Não se vê um sorriso do ator entre suas poucas falas, entretanto seus olhos traduzem a resistência do homem negro nordestino calejado pela vida e pela violência de um povo supremacista e colonizador.

Casa de Antiguidades estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, dia 21/07. O filme foi visto graças ao convite de cabine de imprensa pela Sinny Assessoria e Pandora Filmes.

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