O Deus do Cinema | 2021 | 46ª Mostra de São Paulo
“Os filmes devem provocar reações no coração, não são para pensar com a cabeça”
A memória do que somos pode ser essencial para que de fato acreditemos em nós mesmos e sigamos bem com nossas vidas. Goh, um homem de 78 anos, beberrão e viciado em apostar em corridas de cavalo, não sofre de amnésia, mas há muito tempo esqueceu-se de quem é. Brilhantemente interpretado por Kenji Sawada, nosso protagonista aparece primeiro de cabelos brancos, vestido com uma camiseta colorida escrito “Mahalo” (“gratidão” na língua havaiana), tênis e jeans em O Deus do Cinema, novo longa do veterano diretor japonês Yoji Yamada, conhecido por seus filmes de melodramas familiares.
Goh trabalhou na indústria cinematográfica no Japão na época do pós-guerra e é através de flashbacks sobre sua juventude que descobrimos sua história e a de um triângulo que se forma entre ele, seu amigo e projecionista de filmes, Terashin, e a jovem Yoshiko, moça que trabalhava como cozinheira no restaurante onde sempre se reunia parte da equipe de filmagens e o diretor. Goh era assistente de set, mas era ousado e criativo, escrevendo seu próprio roteiro de cinema. Encorajado por Terashin, ele conseguiu que seu filme pudesse ser produzido, mas sua inexperiência como diretor e os conflitos de ideias com a equipe, o impediram que o filme fosse levado a frente e seu projeto acabou fracassando.
Terashin, assim como Goh, também é apaixonado por cinema e seu sonho era um dia ser crítico renomado ou ter seu próprio cinema para exibir os filmes que ama. Ele desenvolve uma amizade e se apaixona por Yoshiko, que na verdade estava apaixonada por Goh. Nesse triângulo, Yoshiko faz sua escolha e as vidas de cada um seguem. Quando voltamos a olhar para Goh mais velho, o peso de seu vazio e seus arrependimentos fica cada vez mais latente. Ele é um homem vagando sem propósito, cheio de vícios por não ter seguido seu sonho e pelo peso de ter se casado com o amor de seu melhor amigo, fazendo com que sua esposa e filha sofram pelas dívidas que arruma. Em uma conversa seu neto, Yuta, pergunta sobre qual a graça das apostas. “Ter graça ou não, não é uma questão pra mim, é só uma maneira de fugir”.
Perto da ruína familiar causada pelas dívidas de Goh com agiotas, Yoshiko e sua filha já não sabem mais o que fazer, estão todos despedaçados. Yuta parece ser o único da família disposto a olhar diferente para o avô e o fazer resgatar algo precioso: sua identidade. O jovem já mostra interesse por cinema, encontra o velho roteiro abandonado de Goh, fica fascinado por ele e decide que vai inscrevê-lo em um concurso. Então os dois juntos decidem reescrever e atualizar sua narrativa, reavivando o entusiasmo de Goh com o cinema.
O cinema como forma de acolhimento e conexão é o que Yamada traz de mais precioso nesse filme, quebrando a quarta parede em cenas lúdicas, onde uma personagem sai da dela e conversa com Goh na platéia. O faz referenciando e citando Buster Keaton, assim como cita nomes de grandes atores e atrizes em homenagem. O ponto de colapso de Goh foi se decepcionar com o cinema e essa “divindade”, que parece ganhar vida própria aqui, é também o que o resgata, é no cinema que o protagonista se reencontra.
“O cinema é assim Goh. Entre cada tomada vive um espírito divino: O Deus do cinema.”
O melodrama está aqui, transbordando a angústia de uma família quebrada, com uma esposa subserviente que faz de tudo pelo marido, um marido que abandonou a si mesmo e em consequência, sua própria família, uma filha que é mãe solteira, perdeu o emprego e mesmo assim cobre as dívidas do pai. Yamada capricha no drama, mas vai além disso mostrando um elo de amor e cumplicidade genuíno, que vemos ser resgatado aos poucos pelos membros da família, através de Yuta, Yoshiko e Terashin com Goh.
Ao passo que é um filme de memórias e faz um recorte histórico e nostálgico da indústria cinematográfica japonesa do pós-guerra, também nos traz de volta para a realidade contemporânea de um filme gravado em meio a pandemia de COVID-19, retratada ao fim e compreensivelmente inserida pelo diretor de 91 anos.
Filme assistido via cabine de imprensa na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022.
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