Suspiria | 2018

Suspiria | 2018

Nas palavras da atriz Tilda Swinton, musa de Luca Guadagnino, “Suspiria não é um remake, mas uma cobertura” (e não parece o dizer de forma pejorativa). Os fãs do clássico filme de Dario Argento não devem esperar reconhecer nesta obra as marcas do grande mestre do Giallo. O que se tem é apenas um pretexto em comum. Guadagnino não só refaz a estética do filme, como investe suas forças em uma outra narrativa, mais complexa do que a original, distanciando-as quase que totalmente. Ganham força o contexto político e a dança, numa relação metafórica sobre a dominação dos corpos. Perdem-se as cores vibrantes, os cenários estilizados e o gore constante.

Aliás, o Suspiria de Guadagnino faz questão de marcar o tempo em que se passa já no primeiro letreiro, e o reforça em diversos momentos ao longo da projeção: uma Alemanha dividida no ano de 1977. A cortina de ferro demarca a dominação soviética sobre o país. A violência se faz presente não só pelos barulhos de explosões ou na ação policial, mas nos muros pichados e noticiários no rádio e na TV. Contra a iminência de um novo nazismo, grupos rebeldes tomavam a violência como seu meio de resistência. Portanto, há de se considerar que  Suspiria (2018) também trata sobre um tipo de comportamento muito específico, influenciado por esse momento histórico, que desperta uma preocupação política.

Por sua vez, a dança perde seus traços suaves de balé clássico para dar lugar aos movimentos ríspidos da dança contemporânea. Se Argento usava a dança como um pano de fundo para a ação principal, Guadagnino a eleva também como narrativa. Os corpos que se contorcem são como forças ritualísticas de dominação por parte das bruxas. Madame Blanc (uma das personagens de Tilda Swinton) sente prazer em fazer das jovens bailarinas instrumentos para suas coreografias, assim como as outras professoras da companhia quando, por exemplo, ficam abismadas com as habilidades de Suzy Bannion no primeiro teste. Dakota Johnson, que interpreta esta personagem, por mais estigmatizada que tenha sido pelos filmes da sequência 50 Tons de Cinza, faz um trabalho competente e realiza suas cenas sem dublê.

A música, que antes era produzida pela banda italiana Goblin, na versão de 2018 fica por conta de Thom Yorke, vocalista do Radiohead. A diferença é abismal (reconhecerá o leitor familiarizado com os dois sons sem mesmo ter assistido o filme). Agora a trilha sonora é mais sutil e pontual; o silêncio ganha mais espaço e a voz melancólica de Yorke surge com a câmera lenta de algumas cenas. É interessante que a opção dos sussurros, que remete ao título do filme, tão marcados na música de Goblin, pouco aparece na de Yorke. Mas essa rima não é excluída, pelo contrário, tem seu significado reafirmado pela dança. As bailarinas, exauridas pelos movimentos de seus corpos, suspiram com uma força assombrosa.

No que se refere ao design de produção, não há muito o que se comparar, visto que poucos cineastas constroem tão bem o visual de seus filmes como Dario Argento. O lugar que abriga a escola de dança, onde basicamente se passa todo o filme, é um ambiente colossal, luxuoso e colorido. Tudo é incrivelmente impecável, limpo, até mesmo onde acontecem os rituais de bruxaria. Talvez Argento dê uma valoração narrativa e uma peculiaridade ao espaço muito maior do que Guadagnino. Mas isso não diminui o trabalho deste diretor. As escolhas que faz colocam o filme sob um aspecto muito mais realista, construindo um cenário condizente com o momento político e econômico da Alemanha do final da década de 70. A sujeira e a desordem das bruxas tornam tudo muito mais verídico ao espectador. As cores são diametralmente opostas ao filme de Argento, recorrendo sempre ao acinzentado, ao vermelho fechado e vários tons menos saturados e contrastados.

Feitas as inevitáveis comparações, cabe-nos justificar porque a versão de 2018 não perde para a de 1977. Refazer uma obra já marcada como um clássico naturalmente já dificultaria o trabalho de Luca Guadagnino. O cineasta tinha em suas mãos um grande dilema que muitas vezes acaba prejudicando os artistas que fazem releituras de obras já idolatradas: a ideia de que um clássico seria insuperável. Entretanto, há de se considerar que qualquer idolatria e suas consequentes expectativas são muito mais um problema de quem assiste do que do verdadeiro criador de Cinema. Guadanigno tem total consciência disso e toma a decisão mais acertada. Ele realmente assina sua obra e não apenas presta uma homenagem à original. Isso está longe de ser um desrespeito, como poderia achar alguns fãs mais puristas, visto que o diretor utiliza do fio condutor da história para potencializá-la dentro de um novo contexto e, principalmente, de sua impressão estilística. Recentemente vimos Spielberg fazer algo parecido com Amor, Sublime Amor.

A mitologia das bruxas é aumentada. O estilo mais lento de Guadagnino lhe dá liberdade para trabalhar várias camadas sobre a bruxaria que enreda o filme. O primeiro fator claramente destoante da obra original é que o espectador já sabe sobre o que se passa naquela companhia de dança desde as primeiras cenas. A estranheza com que as professoras de balé agem nos revelam logo que alguma coisa ali está errada. Pouco tempo depois já vemos que os poderes de Madame Blanc são assustadores. Com um toque nos punhos e nos pés de Suzy, Blanc é capaz de usar seus movimentos como meio de tortura à fugitiva Olga (Elena Fokina), uma das cenas mais angustiantes do filme. Esta, por sua vez, já é a segunda fuga que presenciamos. Patricia, personagem de Chloë Grace Moretz, é a primeira que nos é apresentada, em um estado psicológico caótico, denunciando a conspiração de bruxas na companhia Markos Tanz. A rebeldia sempre é punida e tem sua força sugada.

Helena Markos (outro personagem de Tilda Swinton) é a “grande mãe” que dá seu nome à companhia de dança. Por mais que só apareça no derradeiro ato, sua presença é sentida no semblante de todas as professoras. Há um temor por sua vida que, depois de muitos anos de feitiçaria, está enfraquecendo. Seu corpo, ou melhor, seu receptáculo, está em frangalhos e precisa urgentemente ser substituído. É aí que Suzy Bannion se insere como protagonista: seu talento na dança faz de seu corpo o ideal para a permanência da líder Markos. A trama agora é executar todos os rituais necessários para a passagem de consciência de uma para a outra. Mas o que as bruxas não sabem, e que o espectador vai descobrindo aos poucos, é que Suzy não é a figura ingênua que aparenta. Neste ponto, a dança é elevada a um nível muito distante do que propusera Argento. As coreografias funcionam como parte do ritual, evidenciam uma luta constante entre o corpo humano e a maldade que tenta dominá-lo.

É por meio de um personagem novo na história que ganhamos uma importante chave interpretativa. Dr. Josef Klemperer (Lutz Ebersdorf) é o psicólogo com quem Patricia confidencia suas descobertas sobre o complô. É ele que, após o desaparecimento da paciente, entra em uma saga para confirmar suas suspeitas sobre aquele lugar. É justamente o viés da Psicologia Analítica que nos dá algumas respostas: Klemperer utiliza os métodos de Carl Jung. Então, podemos nos aproximar do conceito da “mãe devoradora” cunhado pelo psicoterapeuta suíço. O funcionamento da companhia Markos Tanz é matriarcal. Os sonhos de Suzy mostram a relação que tinha com sua mãe que ora aparece agonizando, ora repreendendo a filha. A figura conceitual da Mãe é uma constante no roteiro. Ela representa uma formação inconsciente de repressão e dependência que modula a vida das personagens, seja Bannion ou Blanc, devorando-as. Toda a trajetória de Suzy parece ser uma tentativa de desfiliação, ao mesmo tempo que marca seu destino à maldade, assumindo a função de matrona opressora. O ato final, mais próximo do estilo Argento, é o auge de uma psique delirante vivendo esse conflito. “O delírio é uma mentira que conta uma verdade”, diz Dr. Josef Klemperer.

Suzy Bannion nasceu predestinada a ser a nova Mãe das Bruxas. Sua ingenuidade inicial dá lugar a Mãe Suspiriorum, posto até então assumido por Helena Markos, a falsa profetisa. Se olharmos para o campo político montado por Guadagnino, podemos pensar sobre o fascismo e suas artimanhas. A dominação dos corpos, a eliminação da rebeldia, a tortura, a falsa liderança, a conspiração pelo poder eterno. A evidência colocada sobre os conflitos políticos da Alemanha daquela época nos mostra algo que no filme de Argento ficava muito mais subentendido. O balé Volk (“pessoas”, na tradução para o português), apresentado no período nazista por Blanc e a companhia Markos, é remontado com Suzy Bannion protagonista. Há uma comparação entre os dois momentos e a representação de pessoas sendo “alinhadas” em uma conspiração de domínio coletivo. O belíssimo figurino de cordas vermelhas ganha um peso maior nessa interpretação. Em tempos onde filmes de terror mergulham no que há de mais comum para gerar sustos voluntários e sem sentido, Suspiria de Luca Guadagnino faz o oposto. Por maior que seja a distância entre as duas versões, por mais que o apego ao clássico fale alto, após a leitura desse texto esperamos que seja possível dar méritos ao trabalho do diretor que se desafiou a “cobrir” uma obra resistente ao tempo. Quer-se aqui abrir aqui uma cooperação entre os dois filmes, nunca uma sobreposição. Talvez o Giallo não funcione mais nos dias de hoje, talvez precise de uma releitura, como esta feita por Guadagnino. O Suspiria de 2018 é aterrorizante, angustia, faz pensar e é deslumbrante a seu modo.

Nota:

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