O Homem Cordial | 2019
Segundo longa-metragem do diretor brasiliense Iberê Carvalho, O Homem Cordial, começa a partir da viralização de um vídeo na internet, no qual um homem defende uma criança que parece estar sendo injustiçada. Iberê escolhe, inclusive, usar cenas que parecem ter vindo direto da tela de um celular, antes de nos transportar para o palco de um show de rock, onde o protagonista e rockstar Aurélio – interpretado pelo cantor Paulo Miklos, está aos berros e em meio a vaias e garrafadas, à frente de sua banda com letras de protesto.
A filme não nos facilita explicações acerca do conteúdo do vídeo viral que transforma o astro em vilão logo de cara, mas desenvolve toda sua narrativa destrinchando a origem desse acontecimento e brincando um pouco com a linha do tempo.
O longa trata de algumas questões contemporâneas como a injustiça social e violência policial, mostrando o estrago que o efeito de manada advindo de um pré-julgamento público pode causar. Fato que se torna uma bola de neve de equívocos, ao colocar um menino negro em posição de desvantagem na hierarquia da concepção da verdade. O filme faz uma reflexão coerente e relevante, mesmo que pouco surpreendente dentro do contexto do país, pois infelizmente é comum presenciamos episódios como esse por aqui.
O personagem de Miklos, ao ser filmado defendendo o menino, sofre uma perseguição nas ruas, sua figura acaba estigmatizada pelo julgamento popular, um julgamento raso que bate o martelo sobre determinado assunto sem o mínimo esforço de averiguação. Da mesma forma como a mídia sensacionalista faz em seu trabalho de desinformação via TV aberta, a que grande maioria dos cidadãos médios são submetidos, parece que o cidadão é reflexo desse mal e vice versa.
O fato de Aurélio ser uma figura pública agrava as reações contra ele, o levando a sofrer do mal moderno da “cultura do cancelamento”. Um problema contemporâneo agravado e diretamente conectado ao excessivo uso das redes sociais e pela massiva e extremamente rápida propagação de informações, verdadeiras ou falsas, na web.
Para além da discriminação racial, que desde o princípio parece uma questão importante no conteúdo do vídeo que inicia o filme, o longa discorre críticas à truculência policial e à má conduta dos oficiais da lei, tão comuns e tão absurdamente aceitas no Brasil hoje. O Homem Cordial traz boas cenas de tensão, quando policiais dão uma dura no grupo formado por Aurélio, seu amigo Béstia (interpretado pelo rapper Thaíde), acompanhados de mais dois jovens jornalistas, Helena (Dandara de Moraes) e Judah (Thalles Cabral), que querem ajudar a desvendar o paradeiro do menino, que acabou desaparecendo após as filmagens de uma perseguição. Eles são maltratados e brutalmente espancados, coagidos e sem qualquer direito individual ou respeito.
O Homem Cordial é primordialmente um filme noturno, o longa de Iberê percorre as ruas de São Paulo à noite, se esgueirando em busca de respostas. Com muitas tomadas feitas no escuro, acentuando a iluminação urbana, a cidade-caos e suas cores neon, trazem um clima estético neo-noir denso e momentos de tensão que se aproximam também do cinema de ação. Diversas cenas feitas com câmera na mão e alguns contra planos bruscos, como o de um cachorro raivoso latindo bem alto em primeiro plano, trazem mais peso e acrescentam um clima hostil à obra.
Iberê é sociólogo por formação e escreveu o roteiro em parceria com o uruguaio Pablo Stoll (Whisky) e o título deste seu segundo filme dialoga com o conceito de O HOMEM CORDIAL, criado pelo historiador, sociólogo e escritor brasileiro Sérgio Buarque de Holanda no livro “Raízes do Brasil”, publicado em 1936. Nesse contexto, a palavra “cordial” não significa ser cortês, mas sim partindo da base “cordis” que em latim significa “coração”, assim, o “homem cordial” aqui é o homem visceral, aquele que age com o emocional, que se importa com o próximo a ponto de agir e tomar atitudes a favor dele.
O personagem de Paulo Miklos é a peça central do filme e sua atuação segura bem todo o processo. Aurélio é um homem sem passado e sem rede de amigos, pouco sabemos dele, ele é o “homem cordial” que rege e controla toda a narrativa através de seu senso de justiça. O personagem ganha tanto destaque, que a trama em torno de seu “cancelamento” por vezes se sobrepõe a da criança injustiçada e desaparecida, à dor de sua mãe e familiares. Há certo desequilíbrio nessa abordagem, ao que parecia ser mais pertinente às intenções centrais do filme. Os personagens mais jovens, os jornalistas, podem ter sua importância na história, mas faltou certo entrosamento em cena, parecendo por vezes deslocados.
O Homem Cordial faz um bom trabalho dentro do que se propõe como um filme crítico, sem cair na malha de filmes que tentam o mesmo, mas acabam soando exageradamente caricatos. Os diálogos são fluidos e o texto é consistente, apesar de explorar a temática da violência e da fragilidade social como outros já fizeram (vide Cidade de Deus, Tropa de Elite). O fato de os personagens abrirem uma rede de investigação própria sob a noção de que, se não forem eles a agir, não haveriam respostas nessa missão de achar uma criança negra desaparecida, não se afasta nem um pouco da realidade de abandono social pelo estado, vivida por muitas famílias brasileiras hoje.
O filme foi lançado em 2019, participou de festivais, ganhando prêmios em Gramado e Marsele e chega dia 11 de maio aos cinemas brasileiros!
Filme distribuído pela O2 Play e assistido via cabine de imprensa