Vidas Passadas | 2023
Às vezes podem acontecer conexões entre pessoas que parecem inexplicavelmente inseparáveis, e é sobre esse tipo de conexão que a diretora sul-coreana Celine Song desenvolve em seu primeiro longa-metragem. Vidas Passadas nos faz acompanhar a trajetória de duas vidas que se encontram primeiramente na infância e depois seguem seus rumos por caminhos completamente diferentes. O filme é uma investigação sentimental em muitos níveis, atravessando décadas e longas distâncias.
Nora (Greta Lee) é uma menina obstinada e competitiva, ambiciosa e que sonha alto desde novinha. Hae Sung (Teo Yoo) é um rapaz esforçado e emotivo, companheiro e fiel à sua família. Dessa forma, ainda no período da pré-adolescência, é que somos apresentados aos dois personagens centrais do longa. Estudantes da mesma turma, amigos e entusiastas de um romance desde seu primeiro encontro marcado, com a presença de suas mães, em um parque nas redondezas. Song consegue nos passar a sensação de que aquelas duas crianças já eram, de certa forma, predestinadas uma à outra.
Nora, ainda nova, imigra com sua família para o Canadá. Deixa a Coréia e seus amigos para trás, e com isso sua conexão com Hae Sung. O tempo passa, mais de 20 anos correm e Nora, já independente, deixa para trás também a vida com seus pais e vai viver sozinha em Nova Iorque em busca de seu sonho de ser uma escritora de sucesso. A menina, agora transmutada em mulher, segue o rumo que parecia desejar. Hae Sung presta serviço militar, passa alguns anos no exército e retorna a seu país de origem, para seu velho quarto na casa dos pais, continua ao lado dos amigos com quem cresceu, que ainda bebem no mesmo bar e passam o tempo jogando videogame. O menino agora é um homem feito, preocupado com seu futuro. As vidas seguem naturalmente, as obrigações pessoais, as preocupações com carreira e futuro, fazem com que nos rumos que tomam a vida de cada um, haja um abismo que só cresce.
Song consegue mesclar essa discrepância de destinos à uma conexão que não parece ser desse mundo. Na Coréia existe um termo que é utilizado para designar pessoas que se conheceram em outras vidas e se reencontram. Algo que não tem a intenção de ser bem explicado, nem precisa ser, mas é exemplificado perfeitamente no fluxo das emoções que emanam de um encontro que está sempre sendo adiado, que parece ser impossível, mas que permanece suspenso por um fio invisível de sentimentos suprimidos pela vida.
Hae Sung é a pessoa que fica, Nora, a que vai embora. Como em “Encontros e Desencontros”, de Sofia Coppola, Vidas Passadas revira situações sentimentais ao avesso entre dois adultos fora de sua cidade natal. No filme de Coppola, Bill Murray e Scarlett Johansson se cruzam no Japão, dois desconhecidos que se esbarram e vivem uma relação que vai remendar as feridas internas de cada um. No filme de Celine Song, Nova Iorque é o cenário onde os dois amigos se reencontram, já depois de terem tentado cultivar uma reaproximação virtual, onde criaram apego a um esforço que termina pueril, pois a distância acaba machucando duas almas que precisam muito estar juntas fisicamente. A exploração desse profundo desejo maculado e a conexão entre os jovens coreanos, traçam um rumo dramático e sentimental singular, que se intensifica com a presença de Arthur (John Magaro), marido de Nora.
Arthur é um personagem de muita força, que vive uma relação de companheirismo com Nora e que, ao saber da visita de Hae Sung, tem uma reação extremamente respeitosa, embora preocupada, com os anseios de Nora de rever, finalmente, seu grande amigo de infância. Questionamentos surgem, inseguranças sentimentais, mas, acima de tudo, uma enorme cumplicidade e transparência entre eles. A diretora consegue, com ironia, usar o personagem de Arthur como forma de trabalhar a escolha de Nora de seguir em frente, entre constrangedores passeios a três. Arthur não entende coreano, Hae Sung mal fala inglês, mas profundamente todos se compreendem e se respeitam. Amar pode ganhar novas camadas de sentido, e a dificuldade de se estar com uma determinada pessoa amada nessa vida, pode criar a sensação de possibilidade desse amor em outras.
Ao longo da vida, conforme vamos nos movendo, seja geograficamente ou vivendo novas experiências, precisamos inevitavelmente deixar coisas para trás e essas pequenas “faltas” fazem parte de quem nos tornamos. No parque, onde Nora e Hae Sung se encontram ainda crianças, a mãe de Nora diz à mãe do rapaz: “se você deixa algo para trás, você ganha algo também”. Sob esse sentimento obstinado relatado por sua mãe, a protagonista parece buscar seu lugar no mundo, estar onde deveria estar, sem racionalizar demais, se fez a melhor escolha possível, se deveria mudar algo. Vidas Passadas trabalha com maturidade duas jornadas sentimentais dolorosas, que envelhecem, mudam e ganham forma cada vez mais nítida.
Filme visto através de nossa cobertura do 25º Festival do Rio, acompanhe tudo aqui