Os Delinquentes | 2023

Os Delinquentes | 2023

Algumas reflexões são tão assustadoras que é natural nossa tendência de fuga, o não pensar. Já colocamos na ponta do lápis e quantificamos o tempo de nossas vidas que dedicamos ao trabalho? Considerando um trabalho estável, já calculamos o montante salarial a ser recebido até que nos seja de direito aposentar? Esse saldo parece valer a pena? Parece fazer sentido?

A complexidade da ponderação aumenta quando tomamos alguns fatores: trabalhamos sob o comando e subordinação de outrem ou sob nosso próprio mando? Manejamos nós mesmos nossa rotina de trabalho ou ela nos é imposta? Até que ponto compensa dedicar sua força de trabalho ao outro quando trata-se de uma corporação, um instrumento do capital?

Os Delinquentes, de Rodrigo Moreno, escolhido para representar a Argentina no Oscar 2024 e exibido na mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes, nos força pensar nessa incômoda perspectiva a partir de dois colegas de profissão que dedicam suas vidas a uma categoria corporativa bastante emblemática: os bancos. O bancário Morán (Daniel Elias) comete um crime contra seu empregador e arrasta seu colega Román (Esteban Bigliardi) como cúmplice com o objetivo de parar de trabalhar e ter garantido o suficiente para sobreviver.

Conduzindo Os Delinquentes com uma melancolia divertida, Rodrigo Moreno não tem qualquer pressa. Antes de nos levar até o crime em si, o diretor nos insere na rotina de trabalho de vários personagens daquele setor bancário. A repetição e o esgotamento parecem predominar naquele ambiente adequadamente escuro, construído pelo cinza e pelo marrom, com ares de tempo parado e mofo. O desespero contido dos bancários é bem expressado pelo tom infeliz da conversação entre eles e pelo fumar desesperado nas pausas de trabalho, seja pelo chefe mais velho que consome dois cigarros seguidos, seja pelo protagonista que o tempo todo diz-se não fumante, mas que não consegue se desvencilhar do vício.

Quando chegamos ao crime, as pistas que o diretor lança nos leva para dois caminhos: o do planejamento ou da total ignorância. Aos poucos, nos faz perceber que Morán agiu de forma estrategicamente desesperada. Ciente das consequências de seu ato, as contas do personagem fazem sentido: permanecer três anos, no máximo, na prisão, será mais recompensador do que trabalhar pelo resto da vida. O que Morán não planejava, porém, era que as implicações extrapolariam a pessoalidade, interferindo em todos os trabalhadores do banco, que passam a ser perseguidos e humilhados deliberadamente pela corporação.

Esse pessimismo não pesa nas mãos de Rodrigo Moreno. O diretor se permite uma brusca mudança na condução do filme quando impõe à Román a missão de cúmplice que precisa cumprir determinada jornada bizarra para que tudo saia como planejado. Do ambiente corporativo e infeliz, somos levados ao ar livre, ao rural, ao verde de campos sem fim.

Os Delinquentes desacelera para elaborar os contrastes entre a vida escolhida/imposta e a vida almejada. Román vai se deparar ante um vilarejo campestre e se permitir pausas de relaxamento: nadar, comer, beber, olhar a natureza, atos simples que se mostram fundamentais à felicidade humana. Nessa empreitada, o cúmplice de Morán conhece um grupo de pessoas que estão ali sem exatamente um propósito. Dentre essas pessoas, estão as irmãs Norma (Margarita Molfino) e Morna (Cecilia Rainero). Há uma estranheza e uma desconfiança alienígena na abordagem dessas novas personagens e suas motivações, como se aproveitar o dia, tal como elas se dedicavam a fazer, fosse errado, e o diretor faz questão de manter um mistério nesse entorno. A estranheza se transforma com a crescente atração e curiosidade entre Román e Norma.

O domínio de Rodrigo Moreno se perde um pouco nesse tempo-pausa. Há sutileza e inteligência na forma como os contrastes são apresentados. O urbano caótico e a natureza calma, o capitalismo e a vida humana, o preenchimento do tempo, as motivações da vida, a brisa e a poluição, sempre por meio dessa jornada de Román, como se a busca da felicidade implicasse essa metafórica necessidade de subir montanhas, atravessar rios e enfrentar obstáculos. Entretanto, o diretor se atém a alguns vai-e-vens que se mostram desnecessários à trama, tudo para revelar um plot twist que é até bem interessante e que muda novamente o ritmo de Os Delinquentes, mas que é desenvolvido com uma pressa maior que acaba destoando do restante do longa. Fica perdido e custa a se encontrar.

Em que pese tal ponto, o saldo de Os Delinquentes é muito positivo, principalmente quando percebemos o humor sutil de Rodrigo Moreno enrustido no anagrama engraçadinho que faz com o nome do quarteto Román, Morán, Norma e Morna. O diretor imprime uma leveza e uma excentricidade bem-vindas às duras reflexões que impõe sobre o capitalismo e a felicidade, nunca querendo soar muito complexo ou profundo, e preferindo tomar um caminho observacional, bizarro e divertido que cabe perfeitamente no seu propósito.

Os Delinquentes estreia nos cinemas em 26 de outubro, e integrará o catálogo da MUBI em breve.

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