Os Sapatinhos Vermelhos | 1948
Uma fábula sobre dominação dos corpos
por Gustavo Rosa de Menezes Jacondino
Nos primeiros minutos de “Os Sapatinhos Vermelhos” é mostrado um livro escrito por Hans Christian Andersen, que serve de apoio para uma vela. O conto, que dá nome ao filme, será, então, a bússola que irá nos conduzir nessa história metalinguística de traços sombrios e psicanalíticos que envolve jogos de poder, paixões e ego.
Vicky Page é uma ambiciosa bailarina que é aceita no Ballet Lermontov, juntamente com Julian Craster, um jovem compositor, com o qual passa a viver um romance, e deve escolher entre a carreira e o relacionamento.
Quando Hans Christian Andersen recontou a fábula “Os Sapatinhos Vermelhos“, o fez com algumas adaptações. Em linhas gerais, contava a história de uma vaidosa menina que adquire um par de sapatos vermelhos reluzentes que tem vontade própria e, uma vez calçados, nunca param de dançar. Ela não consegue se ver livre deles nem cortando as alças, então implora a um lenhador que lhe ampute os pés. Este o faz, conferindo-lhe pés de madeira. Ela pede perdão a Deus e é alçada aos céus. Todavia a versão germânica, contada pela psicanalista estadunidense Clarissa Pinkola Estés no célebre livro “Mulheres Que Correm Com Os Lobos” (escrevemos também sobre este livro e a relação com o filme O Piano aqui), acrescenta o fato de que a menina, após ter os pés amputados, “(…) era, agora, uma pobre aleijada, e teve de descobrir um jeito de sobreviver no mundo, trabalhando como criada, e nunca mais ansiou por sapatos vermelhos.” Clarissa ressalta que, anteriormente, a menina tinha um par de sapatos vermelhos, que ela mesma fez quando órfã. Foi-lhe feita a oferta de morar com uma senhora rica, que jogou fora os sapatos manufaturados. A menina então pede de presente um par de sapatos reluzentes de fabricação industrial, posteriormente encantados para dançar sem parar. Segundo Clarissa “(…) a perda dos sapatos vermelhos feitos à mão representa a perda da vitalidade passional e da vida que a própria mulher projetou para si, aliadas à adoção de uma vida domesticada em excesso. Isso acaba levando à perda da percepção aguçada, que induz aos excessos, à perda do pé, a plataforma sobre a qual pousamos, nossa base, um aspecto profundo da nossa natureza instintual que sustenta a nossa liberdade.” A psicanalista usa uma versão mais rica de símbolos dessa fábula, que não possui o moralismo cristão de Andersen, e a partir dela podemos fazer uma leitura mais detalhada do filme.
“Os Sapatinhos Vermelhos” foi realizado pela dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, que dirigiram uma série de filmes célebres, como “Narciso Negro” e “Coronel Blimp – Vida e Morte”. A dupla atuou na década de 1940 e 1950, sob a alcunha de “Arqueiros”, num dos momentos de maior grandeza do cinema britânico.
O longa apresenta, nos primeiros minutos, o reluzente e majestoso Ballet Lermontov, juntamente com a figura de Julian Craster, um compositor de talento que descobre no decorrer do espetáculo que foi plagiado pelo seu professor. Boris Lermontov é visto como uma figura enigmática e de poder, apresentado pertinentemente atrás das cortinas, como um indivíduo que respira arte e trata os seus artistas com o mesmo cuidado que um mestre de fantoches, oferecendo-lhes o que há de melhor e demonstrando um carinho contido e pouco caloroso, mas que exige-lhes dedicação completa, personificando uma espécie de demônio para quem os artistas vendem sua alma em troca do brilho do palco. À eles não é permitido opinar, questionar ou fugir das regras, apenas dançar.
É nesse contexto que Vick Page é apresentada, uma jovem aspirante à bailarina que demonstra a mesma obsessão que Boris, comparando o próprio ato de dançar ao ato de viver. A excelência artística obstinada pode ser sentida também em Julian, quando este já demonstra ter escrito toda uma nova versão para o Ballet “Os Sapatinhos Vermelhos”, mesmo que Lermontov só tenha lhe pedido para reescrever algumas partes. Nesse sentido, é interessante notar que a única pista que temos de que a relação, anteriormente conflituosa, entre Vick e Julian mudou, é quando este, que criticou a lentidão da bailarina em seguir o ritmo da sua composição, sinaliza, antes da apresentação, que ela pode dançar no seu próprio ritmo e que ele a seguirá na condução da orquestra, ou seja, as emoções das personagens são indicadas ao espectador através da conexão desses sujeitos com a arte.
Na espetacular sequência de Ballet, que dura em torno de 15 minutos, temos um prenúncio dos caminhos que a história irá tomar. Vick personifica essa menina que deseja os sapatinhos encantados que fazem a personagem dançar até a morte. Num momento, temos a visão de Boris e Julian no lugar do sapateiro que encanta os cobiçados sapatos, num contraste claro entre lei e desejo. Num show de cores e de efeitos visuais que remetem diretamente ao imaginário dos contos, a dupla Powell e Pressburger decide narrar aquela história fora da lógica naturalista de filmar o palco, mas investindo na mudança de cenários, em closes, movimentos de câmera, em um jogo de luz e sombra, efeitos visuais e uso de cores, posicionando o longa como um dos melhores exemplos de uso de Technicolor.
A partir dali um romance se desenvolve entre Julian e Vick, sem que Boris o perceba, e longe dos olhos dos espectadores também. A natureza obsessiva de Boris se sobressai de uma maneira muito complexa. Como um indivíduo reservado e pouco caloroso, seu ciúme de Vick se assemelha à relação entre Mefistoféles e Dr. Fausto, como se Boris tivesse a capacidade de capturar a alma de Vick através da dança. Boris é o mágico que encanta os sapatos com o seu poder de materializar os sonhos através do espetáculo. E é através do espetáculo que Vick encontra toda a sua potência, mas também descobre a sua maldição.
Os Sapatinhos Vermelhos se edifica como uma alegoria sobre a normalização de hábitos que nos destroem, seja no ambiente de trabalho ou na vida pessoal e, se não formos capazes de optar por um ambiente de equilíbrio entre aquilo que devemos fazer e o que desejamos fazer, estaremos fadados à alienação e à domesticação, a dançar eternamente a dança dos outros, sob a batuta dos outros, até a morte, pagando com a nossa sanidade e com o nosso corpo.
Os Sapatinhos Vermelhos – The Red Shoes- Inglaterra, 1948
Direção: Michael Powell e Emeric Pressburger
Roteiro: Michael Powell, Emeric Pressburger e Keith Winter (diálogos adicionais), baseado num conto de Hans Christian Andersen
Elenco: Moira Shearer, Marius Goring, Anton Walbrook, Ludmilla Tchérina, Léonide Massine, Austin Trevor, Irene Browne, Esmond Knight, Robert Helpmann
Música: Brian Easdale
Fotografia: Jack Cardiff
Montagem: Reginald Mills
Design de produção: Hein Heckroth
Direção de Arte: Arthur Lawson
Figurino: Hein Heckroth