Dente por Dente | 2023

Dente por Dente | 2023

Uma comédia social sobre as consequências da crise financeira causada pelo FMI no Senegal

Dente por Dente, dirigido por Ottis Ba, é um filme coproduzido por Senegal, Bélgica, França e Ruanda, que integrou a Mostra de Cinemas Africanos 2024 com uma exibição prévia de um vídeo gravado pelo diretor, que não pode comparecer ao Brasil para o evento. Na gravação, ele ressaltou o caráter cômico de sua crítica política e social à crise econômica causada pelo FMI no Senegal, destacando o FMI como uma instituição que prejudica países africanos em prol da riqueza dos países considerados desenvolvidos. 

Desemprego, demissão em massa de funcionários públicos com a consequente precarização dos serviços públicos em desfavor de direitos básicos como a saúde e a educação, constituem o contexto caótico em que Augustin (Charles Auguste Koutou), sua esposa e filha vivenciam na capital Dacar até com certo conforto, em que pese seu recente desemprego, já que sua esposa, Viviane (Oumy Ndeye Mbaye), é médica e possui uma clínica própria. O protagonista entra numa crise interna e em conflito com sua própria e suposta honra como homem, já que deixou de ser o provedor da casa. Com dificuldades de assumir que depende da esposa para fazendo, para tanto, empréstimos com um agiota, e Dente por Dente vai retratar a bola de neve de divertidos acontecimentos que vão girar ao redor disso.

Ottis Ba faz uma carinhosa homenagem ao locutor Love Daddy (Samuel L. Jackson) de Faça a Coisa Certa (Spike Lee) ao inserir a Rádio Samba cujo enunciador (Jean Pierre Correa) dialoga diretamente com a população e assiste a tudo que acontece naquele espaço, cumprimentando as pessoas que passam, dinamizando os acontecimentos e sendo o responsável por contextualizar a crise que assola o país. 

Existe um conflito e uma delimitação geracional importante posta pelo diretor em Dente por Dente, que vai exercer dois papeis distintos, porém complementares, de forma a comentar o contexto político que pinta suas consequências até os dias atuais. O primeiro, é diretamente relacionado ao protagonista, um homem já idoso, imbuído de uma formação notoriamente machista, que vê o patriarcado como única composição familiar e social possível. Augustin se vê em conflito moral ao visualizar-se tanto num modelo familiar que vai se tornando matriarcal, como diante da filha Aminata (Oumou Ndeye Kaltoum Ndiaye), que é feminista e estudante diretamente afetada pela precarização da educação, fazendo parte da liderança do movimento militante universitário. Portanto, apesar do evidente carinho entre eles e do amor que permeia aquela família, o perfil moralmente conservador do pai vai afrontar a militância da filha. 

A segunda oposição que se faz é contextual e vem reproduzir os efeitos da crise política. Na busca por emprego, Augustin lida com sua superqualificação, já que as empresas buscam mão de obra menos qualificada, barata, e sobretudo, jovem. Não há mais espaço para ele no mercado de trabalho, e para inserir-se novamente, o protagonista necessita submeter-se a um posto abaixo de sua formação e a um chefe mais novo. Enquanto isso, o enfraquecimento da educação torna muito pessimista a perspectiva de futuro das gerações mais novas. Com o congelamento das verbas e da contratação de novos professores, os estudantes estagnam. O descaso político vai dar azo à debandada da juventude em busca de melhores condições de vida na Europa, o que faz recair na imigração ilegal e nas travessias oceânicas desumanas e altamente mortais. 

Augustin, que da recusa a tornar-se dono de casa e realizar tarefas domésticas vai mudando, ainda que muito lentamente, suas perspectivas no âmbito familiar, vai culminar sua revolta contra o sistema se comprometendo cada vez mais em sua cômica fuga contra a perseguição do agiota, até buscar em uma espécie de vidente a solução para o real culpado de todo o caos: o próprio FMI, o colonizador que ele deseja amaldiçoar. O título Dente por Dente, aqui, vai encontrar seu sentido tanto no seu propósito de vingança quanto nos itens solicitados pela vidente para que a maldição se concretize. Ottis Ba parece encontrar inspiração em Spike Lee também na conclusão de seu filme, quando insere imagens reais de uma juventude senegalesa abandonada em protestos ocorridos em 2021, um soco no estômago dessa tragicomédia.

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