Lan – O Caricaturista | 2025

Lan – O Caricaturista | 2025

A conexão de uma pessoa com a terra não decorre, meramente, pelo motivo de nascimento, ou seja, não se limita às suas origens. Você pode viajar e sentir-se vinculado a um lugar. Você pode passar a vida toda noutro e não vivenciar elo algum. Lanfranco Aldo Riccardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini, o caricaturista, chargista e ilustrador de nome colossal que ficou conhecido apenas como Lan, foi o italiano mais carioca que muitos natos do Rio de Janeiro. Nascido em 1925 na Toscana, veio para o Brasil aos 4 anos, e em razão do emprego do pai, morou no Uruguai e na Argentina. Em 1952, conheceu as terras cariocas, e daqui, se enamorou, criou raízes e permaneceu até seu falecimento recente, em 2020, aos 95 anos.

Lan – o caricaturista, documentário dirigido por Pedro Vinicius e integrante da Competição Brasileira de Longas e Médias-Metragens do 30º É Tudo Verdade (Festival Internacional de Documentários) é um retrato intimista, em primeira pessoa, dessa figura ítalo-carioca. A câmera, como propiciadora dessa imagem-documento, apenas observa-o, muito próxima, permitindo um espaço seguro para que usufrua da intimidade, dele para com ele mesmo, dele com suas próprias memórias, puxando fios que, gradativamente, vão tecendo a narrativa pela qual o diretor vai vestir seu filme. 

O longa é todo filmado no sítio de Lan, em Petrópolis, seu refúgio onde se abriga com sua esposa, Olívia Marinho (falecida apenas um ano após a morte de Lan), bailarina e considerada uma das maiores passistas carnavalescas, integrante, ainda, do trio Irmãs Marinhos, e com seu labrador. Durante as gravações, Lan já mostrava-se bastante debilitado pela idade, e o que vemos é sua rotina a passos lentos, dados com custo e somente com auxílio, suas refeições regadas a uma taça modesta de vinho diante da lareira, e seus desenhos – ele jamais parou de trabalhar. 

São justamente as inspirações e os frutos desse incansável ilustrador que o fazem uma figura tão carioca. Todo o traçado de Lan, como ele mesmo narra para nós, como num diário, é guiado pela geografia curvilínea da cidade do Rio de Janeiro com seus picos, serras, morros e praias. Para o chargista, esse aspecto sinuoso faz da cidade um local muito feminino, como se o Rio de Janeiro fosse, de fato, uma mulher. Sua definição é decifrada sem muito esforço através de seus desenhos: as mulheres que ele reproduz possuem curvas muito marcantes, tal qual as margens de uma praia ou o desenho de uma montanha. Assistimos em plano-detalhe as mãos de Lan segurando o lápis que formará, hesitante, num papel em branco, a letra S – esse é o princípio de seu ponto de vista feminino e carioca.

O papel em branco abre e dá fechamento à Lan – o caricaturista. É a partir desse vazio que ele desenha sua carreira e sua vida, extraindo-a do papel para contá-la para nós. Os planos-detalhe que nos permitem acessar a vida que Lan vai preenchendo com sua narração, vão acompanhar o filme e seu tom privativo para mostrar orelhas, mãos, dedos que, cuidadosos, tocam a superfície a ser desenhada. Do mesmo modo que a autorreflexão do personagem vai preenchendo o documento-imagem, Pedro Vinicius faz com que a já dissipante existência corpórea de Lan ocupe os espaços da casa, mostrando sua figura, através de um travelling marcante, sentada em diversos pontos, na ilusão de que o faz simultaneamente. O mesmo movimento vai se repetir para exibir as charges do caricaturista quase como uma grande obra única, uma síntese unificada das cenas cariocas que ele tanto representava.

A história de Lan, de fato, resume-se um tanto à história do Brasil da década de 1950 em diante, e portanto, trata-se de uma história política, que faz de Lan – o caricaturista um documentário da mesma natureza. O caricaturista era, fundamentalmente, chargista político, e o sucesso de sua carreira construiu-se a partir de tal trabalho nos jornais cariocas mais famosos. Foi, como tantos, exilado por seu posicionamento. Ao conversar consigo mesmo, o ilustrador critica a voracidade do populismo e dos regimes ditatoriais, definindo-se, por provocação, como um anarquista de centro – esse seria seu partido, e é assim que ele se denominava nos tempos de golpe. A política o levou a ser quase parceiro de Che Guevara em sua viagem de motocicleta, não fossem os caminhos do amor falarem mais alto em sua vida.

Entre namorar e fazer revolução, sempre preferi as mulheres.” É assim que Olívia se insere na vida de Lanfranco, aquela que mudou-lhe as rotas e o fez ficar em sua terra. Olívia, uma mulher negra, fez concretizar os sonhos do Lan adolescente e seu primeiro amor: a babá Zezé, seu primeiro contato com pessoas de pele negra. Neste ponto, é incômodo, porém fruto do contexto e de seu tempo, como ele se refere a seu antigo amor infantil como “pessoa de cor”. Como artista e jornalista, encontrou na cultura popular negra fonte de inspiração para seus trabalhos – “A cultura popular é base para conhecer um povo”. Essa relação com a cultura negra, que ele narra como curiosidade decorrente do trabalho, bem representa seu olhar como estrangeiro-europeu àquilo que dele difere, e há, aqui, uma linha tênue entre a curiosidade e algo que poderia se aproximar do racismo reproduzido pelas estruturas sociais. Pedro Vinicius não teme a ultrapassagem dessa linha, não oculta um lado artístico de Lan que tende a objetificar corpos femininos – já que constituem seu impulso criativo. 

Não faria mesmo sentido censurar qualquer fala de Lan, que foi, ele mesmo, um combatente da censura do regime militar no Brasil. “Não existe o proibido pensar”, diz um Lan que abre e fecha as janelas de seu ateliê repetidas vezes, como se fazendo tal movimento em seu próprio fluxo de pensamento. Em seu primeiro livro, o artista faz dedicatória a todas as pessoas sem distinção de cor e às escolas de samba. O S, a representação do Rio de Janeiro como mulher, as curvas do corpo feminino que ele reproduzia em seus desenhos, as bundas que ele gostava de desenhar, voluptuosas e harmônicas, o fazem resumir seu trabalho na própria letra incitadora – sexo, sacanagem, sensibilidade e sensualidade.  

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