Incompatível com a Vida | 28º Festival É Tudo Verdade

Incompatível com a Vida | 28º Festival É Tudo Verdade

Existem algumas dores e sentimentos muito exclusivos do corpo feminino. O corpo que biologicamente nasce feminino menstrua todos os meses, sofre de cólicas, dores nas pernas, dores de cabeça, diarreia, dores abdominais, sintomas diversos que o mundo hesita em expor. Lida com uma montanha-russa hormonal que oscila da euforia à tristeza e desânimos inexplicáveis. Quando a menstruação se vai, a confusão e bomba relógio hormonal que é a menopausa acontece. Então, esse corpo lida com ondas de calor intensas, palpitações, alterações vaginais, distúrbios do sono, falta de concentração, mudanças de peso, queda de cabelos, além de depressão, ansiedade, alterações de humor, irritabilidade e exaustão mental. Tudo isso faz parte do ciclo da vida do corpo do sexo feminino. Compartilhar desse ciclo é algo que naturalmente une as mulheres, um vínculo de sororidade inato. O homem, entendido como aquele que nasce no sexo masculino, dificilmente será capaz de compreender plenamente tais dores e sensações. Há, inclusive, um distanciamento proposital e confortável socialmente imposto ao homem no que se refere a tais questões.

A maternidade, biológica ou não, também funciona como esse elo conector de mulheres. Especificamente a maternidade biológica traz uma nova explosão hormonal e mudanças corporais acontecem para que o organismo se adeque à recepção de um feto, uma nova vida. Naturalmente o corpo sabe o que fazer para tornar a mulher capaz de gerar vida e parir. O parto é outra dor compartilhada que somente mulheres que já passaram por ele serão capazes de compreender. Essa que vos escreve, como mulher que nunca pariu, se considera muito distante de imaginá-lo, seja em seu aspecto físico ou emocional.

Assistir Incompatível com a Vida, documentário de Eliza Capai que integra o programa do 28º Festival É Tudo Verdade na mostra de competição brasileira de longas metragens, gera sentimentos intensos. Assisti-lo como mulher gera sentimentos que, tal como os da menstruação ou da menopausa, acredito que são experimentados de forma muito peculiar e exclusiva. Há uma capacidade feminina de abraçar a dor de suas pares e senti-las, de alguma forma. Ainda que o homem seja parte dessa história trazida pelo documentário, o distanciamento permanece. A dor sentida após a sessão foi expressa por outras mulheres que me acompanharam na ocasião – a sororidade natural que nos une.

Eliza Capai ficou grávida durante a pandemia. Como documentarista, presa dentro de casa assim como o resto do mundo, num Brasil ainda mais terrível com uma presidência genocida, resolveu registrar as fases de sua gravidez. Em meio a seus apontamentos visuais, a diretora descobriu que o bebê que carregava em seu ventre era perfeito, exceto pela cabeça: os exames de imagem revelaram malformação craniana. O feto foi classificado como incompatível para a vida.

As saídas para essa situação são poucas: interrupção da gravidez, com parto do feto natimorto, ou continuidade da gravidez, com parto do feto que, se não natimorto, sobreviverá poucos minutos. Num país como o Brasil, o aborto não é legalizado nesses casos (não se trata de uma anencefalia). Para um aborto seguro, é necessário que a mulher solicite uma ordem judicial para tanto, e caso, com muito custo, o consiga, precisará encontrar um hospital que o faça.

A dor dilacerante nos seus mais complexos significados fez com que Capai buscasse outras mulheres com experiências semelhantes à sua. O documentário se alterna entre os registros da diretora e entrevistas com essas mulheres, numa rede potente de troca e compartilhamento de histórias, medos, pesadelos, expectativas, frustrações e dores, que não se limitam às vivências de cada uma, mas se tornam um debate sobre saúde e políticas públicas, e uma reflexão poderosa sobre maternidade, morte, luto, e sobre o que é ser mulher.

A diretora constrói essa conexão de histórias com a sensibilidade e crueza necessárias ao tema de forma um tanto mística. Capai, que optou por interromper a gravidez (com maior humanidade, uma vez que se mudou para Portugal), registra longamente as contrações de seu parto. Há, inclusive, um aviso de gatilho no início do longa. A pessoalidade é inevitável e não impede que se dê espaço a todas as mulheres entrevistadas. Capai encontra mulheres de classes sociais, localidades e religiões diversas. A reação à dor que as une é muito individual. Há mulheres que pariram seus filhos incompatíveis com a vida há quase uma década e não se recuperaram do luto, se é que há recuperação. Há mulheres que conseguiram seguir em frente e enfrentar o imenso desafio de uma nova maternidade. Há mulheres que sempre sonharam com a maternidade, mas que após a experiência vivenciada viram seus sonhos questionados. Outras, não conseguem se desfazer das roupas que foram guardadas para o bebê.

O documentário, obrigatoriamente, vem como um grito em prol do amadurecimento social e humano no sentido de falar sobre temas como esse. O moralismo que se reflete nas leis silencia as vozes dessas mulheres que, além da dor (física e emocional) de parir uma criança que jamais experimentará a vida, correm o risco de saírem dos hospitais algemadas se não tiverem uma ordem judicial que autorize a interrupção da gravidez. É um acúmulo de sofrimentos que serão exclusivamente suportados por mulheres, justificando o distanciamento, principalmente masculino, dessas experiências recorrentes.

Tudo que diz respeito ao corpo do sexo feminino parece ser envolto em um tabu muito conveniente para o distanciamento entre mulheres. Aqui, é inevitável o paralelo com a ficção Entre Mulheres, melhor roteiro adaptado do Oscar 2023. Quando mulheres falam, homens ouvem e tomam nota. O cinema propicia que essas vozes sejam ouvidas, permite que elas ecoem. E a voz de Eliza Capai precisa soar muito alto.

Incompatível com a Vida pode ser assistido em São Paulo no dia 15 de abril às 20h30 no Cine Marquise e no dia 19 de abril na Cinemateca Brasileira. No Rio de Janeiro, será exibido no dia 18 de abril, às 20h no NET Botafogo, e no dia 19 de abril, às 18h, no Estação NET Rio dia 20, às 19h.

Nota

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