O Competidor | 2023
A década de 90 foi um acontecimento um tanto insano para a TV. Famílias se reuniam, crianças e idosos, para prestigiar a sexualização de mulheres na banheira do Gugu, em programas como Domingo Legal, as apresentações das sex symbols “Tiazinha” e “Feiticeira” no programa do Luciano Huck, e o sushi erótico do Domingão do Faustão. Até um suicídio foi televionado ao vivo em 1993 pelo SBT.
No Japão, o sensacionalismo também dominava os reality shows. Em 1998, o programa Susunu! Denpa Shonen fazia milhões de espectadores pela exploração de pessoas submetidas ao primitivismo humano em testes extremos de superação. Tomoaki Hamatsu foi a mais famosa vítima. Conhecido como Nasubi (berinjela no português, apelido que recebeu por seu rosto alongado), o jovem foi escolhido aleatoriamente quando acreditava estar participando de algum tipo de audição, já que era (e é ainda hoje) comediante. Sem assinar qualquer contrato e com pouquíssimas informações, foi isolado num quarto de apartamento, nu, com um travesseiro e pouquíssimos itens ou móveis, mas muitas revistas de cupons de concurso, que com o tempo, ele aprendeu que precisava ganhar para poder se alimentar e sobreviver ali – “uma vida em prêmios”, como era chamado pelo programa, até que atingisse a meta de 1 milhão de yens. Nessa toada, Hamatsu permaneceu mais de um ano trancafiado, desnutrido e com gravíssimos transtornos psicológicos, sem saber que toda sua lida era assistida por mais de 15 milhões de pessoas.
O Competidor, documentário britânico de abertura do 29º É Tudo Verdade em São Paulo, vem contar essa história de violação de direitos humanos, ao vivo, em rede nacional, sob o aval de todas as pessoas espectadoras, por meio do próprio Tomoaki Hamatsu e do produtor do programa na época. Tudo parece uma tentativa de redenção e pedido de desculpas ao protagonista, mas a lógica da diretora Clair Titley é tão tóxica quanto o abuso que ela pretende denunciar: O Competidor usa do sensacionalismo para Hamatsu reviver toda aquela tortura, e quer nos chocar com as imagens, expondo-o uma vez mais.
O protagonista Hamatsu nos narra os danos que sofreu nos moldes de uma entrevista mais frontal, de confronto, na qual ele encara a câmera diretamente, ao passo que a Titley revive cenas do exploratório Susunu! Denpa Shonen, e são essas imagens que dominam a maior parte de O Competidor. Cientes que estamos de que aquela exposição absurda era criminosa, pois realizada sem o consentimento pleno daquele homem colocado em cárcere, somos bombardeados com seu sofrimento e as piadas feitas sobre ele, sua nudez em rede nacional, seu esforço para descobrir como receber alimento, seu alimento que vinha em forma de ração de cachorro. Há um certo fetiche no modo como a diretora parece querer abordar essa desumanização nos fazendo assistir Hamatsu ser ridicularizado, num choque pelo choque, que se mostra ainda mais evidente quando cria um viés rival dele com o produtor e criador do programa.
Essa rivalidade é posta quase que de forma risível, e o seria, se o caso não fosse tão sério. O produtor basicamente é um vilão não arrependido, que se auto intitula demônio quando Hamatsu se refere a ele como um “deus” da TV (antes de passar tudo que passou), e Titley nos localiza antes de trazê-lo em tela sempre com a mesma imagem de um arranha-céu imponente, como se ele ocupasse o topo daquele prédio (e de qualquer hierarquia possível). O produtor parece não levar nada a sério, e soa jocoso até mesmo naquele contexto em que notoriamente ele é a pessoa que seria (deveria?) ser responsabilizada.
A impressão que fica é que O Competidor também está à mercê desse produtor. A reprodução da humilhação de Hamatsu e seu sofrimento posto em rivalidade com o dono do programa, se transformam numa história de superação do protagonista, confundida com a história de tragédias de sua própria terra natal, Fukushima. O local viria a sofrer com terremoto, tsunami e acidente em usina nuclear, o que o motiva a subir o Everest pela segunda vez como forma de incentivar seu povo a dar a volta por cima.
De fato, a história de Tomoaki Hamatsu é muito comovente, mas vê-se que mesmo tendo sido submetido a tantas espécies de violação, sequer possui estabilidade financeira, ao que nos mostra o filme. Não se cita qualquer indenização que ele eventualmente tenha recebido. Pelo contrário, diz-se que em sua ida ao Nepal com esse propósito de dar esperança à Fukushima, ele não tinha dinheiro para tanto, e recebeu uma espécie de “ajuda” do produtor do programa que o violou (agora pintado como bom samaritano), informação notoriamente inserida com finalidade de redenção – do magnata. O Competidor se revela, então, um pedido de desculpas indireto, uma tentativa estranha de mostrar que vilão e herói, no fim das contas, tornaram-se bons amigos, relativizando a gravidade de tudo, livrando os responsáveis de qualquer penalidade.
Essa crítica faz parte da nossa cobertura da 29ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários | Acompanhe aqui