Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida | 2024

Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida | 2024

Parece haver um certo momento muito decisivo de nossas existências no que se refere à ideia de legado, continuidade e descendência, que está intimamente ligado ao ciclo da vida, e também às convenções sociais que nos são impostas por essa sociedade patriarcal: deve-se nascer, estudar, casar, ter filhos, criá-los e completar esse círculo. Tudo que foge dessa roda soa estranho, e sua exigência é carregada de um individualismo que muito beneficia o capital. É forte e perceptível tal incentivo ao egocentrismo quando a  descendência está intrinsecamente relacionada ao ato de gerar em si. Deseja-se filhos, desde que esse seja uma espécie de cópia melhorada da versão dos pais, em imagem e personalidade.

Nesse mundo de egos, perde-se o bonito significado que existe para além da perpetuação da espécie pelo sangue, que é a do compartilhamento da vida, o da criação e responsabilidade por uma pessoa para que ela se torne a melhor versão possível dela mesma, de aprendizado e ensinamento mútuos, o da conexão espiritual mesmo entre pessoas, em prol, ao menos, da esperança por um mundo melhor. Bel Bechara e Sandro Serpa, em Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida revelam esse sentido mais primitivo da decisão de garantir uma descendência através da adoção. O casal nos confirma que acontecimentos importantes vêm como uma peça pregada em nossas vidas, nos momentos mais inesperados. Em 2021, em meio à pandemia pelo Covid-19 e em pleno desgoverno, eles, que já aguardavam há 05 anos, recebem a notícia de que um bebê chamado Gael, de quatro meses, possivelmente poderia se tornar seu filho.

Como cineastas e então futuros pais, Bel e Sandro usam de suas ferramentas de trabalho para, inicialmente incertos, registrar todos os trâmites da adoção, sem saberem o que se tornaria aquele material todo que é produzido a partir do recebimento da notícia, e que perpassa, através dessa câmera-diário, todas as dúvidas e percalços cotidianos até a autorização judicial definitiva. O resultado é deliciosamente espontâneo, acessível no sentido de carregar uma fluidez que naturalmente adentra o coração de seus espectadores, e não há, aqui, qualquer apelo exagerado ou clichê formulado para tanto. A honestidade dos diretores, que nos permitem aproximar, sem muitas interferências, de suas vidas, seus medos, suas ansiedades e também dos momentos mais importantes quiçá de toda sua existência, confere ao documentário uma humanidade muito sincera, e tira Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida de qualquer caixinha protocolar.

Vemos que a preparação e as preocupações naturais para o recebimento de uma criança acontecem independentemente da origem daquela vida que se tornará parte do seio familiar. O primeiro contato deles com Gael é feito através de uma videochamada e de fotos disponibilizadas pelo abrigo. Há uma ansiedade saudável quanto à arrumação da casa, aos espaços que precisam ser adequados, ao comportamento do cachorrinho do casal, as roupinhas que precisam, antes de usadas, serem lavadas, e ao enorme mistério que são os cuidados necessitados por um bebê de quatro meses, sendo esses os que mais ocupam os diálogos do documentário. Afinal, é inevitavelmente apavorante a ideia de se tornar plenamente responsável por uma vida.

Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida é muito privilegiado pelas personalidades leves e divertidas dos diretores. Quando Bel expressa suas dúvidas quanto aos jatos de xixi que um bebê do gênero masculino pode produzir, Sandro acompanha seus gestos com a câmera, simulando o possível trajeto do xixi. Quando o casal vai visitar Gael pela primeira vez, num trajeto de 1h30min, a música de Rita Lee que dá nome ao documentário cai como uma luva e dá a ideia para o título. Ao chegarem ao abrigo, a fala do GPS “Você chegou ao seu destino” ecoa muito definitiva.

Muitos são os estigmas que Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida ajuda a quebrar. É incompreensível que a adoção ainda gere tanta resistência social. A qualidade dos abrigos que recebem essas crianças é um desses preconceitos. Lá, Bel e Sandro aprendem as principais tarefas dos cuidados de um bebê, tais como o banho, a alimentação, a interpretação dos sinais de incômodo, são 10 encontros sob supervisão até que a criança possa passar alguns dias com os futuros pais.  É bastante complexa, inclusive, a relação das cuidadoras responsáveis pelos bebês quando chega o (esperado) momento de ganhar uma nova família, e mostra-se uma decisão muito carinhosa dos diretores mostrar esse apego que, inevitavelmente, acaba existindo.

Bel e Sandro nomeiam seus sentimentos, tornando-os mais palpáveis. Ternura, saudade, emoção, são alguns que afloram quando, já depois de um tempo de convivência, eles se vêem longe de Gael. É adorável para nós (mas imagino que não o tenha sido para eles) observar a alegria mista com um desespero contido quando descobrem que já podem levar o filhinho para casa por alguns dias, e se dão conta que não possuem mamadeira, leite,  berço e nem fraldas suficientes. A primeira experiência é sentenciada com sinceridade por Bel: “Fizemos tudo errado ontem”, e dá ao casal nota 2 pela boa intenção. É exatamente no destaque desses detalhes rotineiros, até banais, que Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida se eleva, e nos mostra, na singeleza, o rebuliço que é a chegada de uma criança em um lar.

Essa singeleza e espontaneidade com que tudo é feito jamais deixa de atender a um evidente cuidado estético dos diretores, que constroem planos belíssimos com o pouco que têm, isolados, dentro de casa, pela pandemia. A elegância do cachorrinho da família, que posa sobre o sofá defronte à janela sob o sol, compõe lindamente com os acontecimentos da casa, como o bebê repousando ou sendo carregado. A musicalidade e a veia artística de Bel e Sandro também enriquecem sobremaneira o longa para além da criatividade que lhes é inerente como cineastas, quando consideramos os efeitos carinhosos que nos causam quando Sandro, por exemplo, toca violão para seu filho, ou quando Bel quer captar Gael dormindo ao som de Debussy (e o encontra bem acordado).

Todas as pessoas experienciam os mistérios da vida em várias de suas formas. Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida parece dar voz a alguns desses enigmas. Debatendo, num documentário doméstico, Ozu e Truffaut, Bel e Sandro nos fazem questionar o aspecto decepcionante da vida, a impossibilidade de um final feliz e o envelhecimento sem que soem amargos ou melancólicos, tudo através da descoberta de um outro ser, que faz tudo pela primeira vez na vida, e que dá sentido a tais questões. Tornam-se, de fato, mãe e pai, sob nossos olhos.

Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida foi assistido durante nossa cobertura do É Tudo Verdade 2024.

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