Corpo | 2024

Corpo | 2024

A pressão social pelo corpo magro e tido como perfeito da mulher já a persegue desde a infância. Qual não é a magnitude dessa pressão sobre mulheres que trabalham com seus corpos, que precisam se submeter às carreiras que exigem uma magreza por vezes desumana. De fato, o padrão de beleza é uma invenção social de irreal alcance, e sua imposição vai contra qualquer ideia de saúde – física e psicológica. Urska Ristic é a protagonista de Corpo, dirigido por Petra Seliškar, e é dela o corpo onde que seremos inseridos com uma pretensão imersiva, não para compreendê-lo, mas para sentir o pesado fardo que ele carrega.

Como jovem modelo, e portanto, portadora de um corpo que atende aos padrões de beleza exigidos pela profissão, Urska mantinha uma câmera de registro de atividades rotineiras, como desfiles, momentos com sua filha pequena e dela mesma praticando nado. O ato de nadar é elemento que demarca muito bem as fases da vida da protagonista, traçando uma linha definitiva de sua existência, ao mesmo tempo em que une o filme e seus tempos. Com 29 anos, Urska vai ao médico com herpes, é criticada por uma possível DST, e subitamente entra em febre e em coma. Quando acorda, não consegue andar e não se recorda nem mesmo de sua filha. Aos poucos, ela recupera a memória e restabelece os movimentos, com dificuldade. Recebe uma bomba de medicamentos que modificam e incham seu corpo, que jamais voltará a ser o mesmo.

Corpo é uma incômoda inserção nas transformações sofridas por essa mulher, que descobre-se portadora de raras doenças autoimunes. Usa de imagens de amostras microscópicas de sangue e doença, para nos fazer adentrar nas mazelas desse corpo feminino que, apesar de tudo, se sustenta, se supera e quer viver. Uma experiência densa, estranha e ao mesmo tempo esperançosa sobre essa mulher escolhida pelos mistérios da vida a passar por tudo que visualizamos.

A diretora faz paralelos levemente poéticos entre o passado e o presente de Urska, com transições compostas desde insetos desses dois tempos distintos, até pelo fluxo da água, tão significativa para a protagonista, e que aqui é aproveitada em sua simbologia de transformação. A densidade de Corpo é construída por tais paralelos, que nos colocam ante um passado que é feliz, porém estranho, e o ar dessa estranheza que permeia todo o longa é corroborado por uma trilha sonora riscada, distorcida e constante, como que sempre revelando que há algo de errado ali. 

As distorções da trilha sonora são transportadas para as imagens, como se toda a situação de Urska fosse, de fato, um desvio daquilo que deveria ter sido. Quando de seu primeiro coma, somos inseridos nas imagens celulares, virulentas, de fluxo sanguíneo, para que ela narre sua própria doença, a dor que queima, e seu próprio estado de inconsciência, numa composição um tanto alucinógena. “Não quero morrer, mas também não quero viver” é como ela traduz tudo aquilo.

Corpo se alterna entre esses experimentos microscópicos com narração e uma trilha sonora incômoda e estridente, e imagens atuais de Urska e sua família, suas internações e os registros que fez no decorrer do tempo. Durante o longa, descobrimos que sua doença autoimune tem nome, tratando-se de uma Vasculite Neurocerebral, que faz seu corpo atacar suas próprias veias. As crises que ela passa a ter são epilépticas, e têm como consequência episódios de demência e esquizofrenia. 

Diante da impossibilidade de cura e da inconstância de sua saúde, resta à Urska viver um dia de cada vez, fazendo o que lhe é possível. “Eu amo a vida, mas não a qualquer custo”, ela reflete com tremenda consciência. A jornada de Urska não é exatamente de superação, mas de aceitação das mudanças que seu corpo sofreu, interna e externamente. O nado é um gatilho, mas ela nada mesmo assim. Petra Seliškar faz um trabalho desconfortável, que evita cair no melodrama, e bonito na mesma medida. 

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