Assassino por Acaso | 2024

Assassino por Acaso | 2024

Com bom humor e tesão, Linklater brinca com as muitas personas que um mesmo indivíduo pode guardar, e nos faz apaixonar por um casal uma vez mais.

Se somos capazes de performar diversas personas como adaptação a determinados ambientes ou situações, qual seria a nossa personalidade verdadeira? Como determinamos e delimitamos essa parte real de nossas vidas? Todas as outras vivências, experimentadas pelas personas representadas, não seriam também reais? É através de um Glen Powell na pele de um professor universitário que leciona filosofia e psicologia, sistemático e correto, que não se percebe nem é percebido como uma pessoa muito atraente, que Richard Linklater brinca com a psicanálise na comédia romântica Assassino por Acaso

Gary Johnson (Powell), além de um professor certinho, vestido de bermuda abaixo do joelho, cinto, camisa e sapatênis, que faz suas refeições meticulosamente quantificadas em uma mesa para uma pessoa só, acompanhado de seus gatos Id e Ego, é também agente oculto da CIA, atuando junto a um grupo que dá flagrantes em pessoas que querem contratar assassinos de aluguel. O possível criminoso entra em contato com o suposto profissional, que é o agente cuja missão é se encontrar com o contratante, munido de escutas e câmeras, induzir a pessoa a dizer em voz alta a ilicitude que deseja, e entregar o dinheiro da contratação. 

A princípio, Jasper (Austin Amelio) é o agente encarregado de se passar por assassino de aluguel. Quando ele é punido com afastamento por espancar adolescentes, Gary se vê obrigado a aceitar inesperadamente a promoção e atuar no lugar do colega. Se antes de fazê-lo ele está apavorado e temendo por sua vida, com suor transparecendo pela camisa no peito, depois de incorporar o hitman pela primeira vez, descobre um novo talento em sua vida, surpreendendo a seus colegas e a si mesmo pela criatividade e capacidade de convencimento da pessoa flagrada. Afinal, detalhar o modus operandi de um assassinato encomendado afirmando espalhar os dedos da vítima a cada alguns quilômetros é um tanto inesperado para a figura que ele demonstrava ser.

Descoberto o novo dom, afloram-se as inúmeras personas que Gary vai assumir, adequando o tipo de personalidade para cada potencial suspeito, previamente investigado. Além de trejeitos e vestimentas, sotaques, maquiagens e tatuagens também são forjados para atender as expectativas de cada uma daquelas pessoas sobre como seria e deveria se comportar um matador de aluguel. Linklater brinca com a fantasia criada pelo Cinema sobre uma profissão inexistente: estamos tão acostumados a lidar com hitmans em filmes que criamos, em nossa mente, um determinado tipo que atenda àquilo que vemos nas telas. Cabe à Powell incorporá-los ao bel prazer de cada imaginário, e o faz com uma versatilidade absurda aos nossos olhos, alternando-se de uma persona para outra de forma magnética, certamente numa das maiores atuações do ano.

Na medida em que ele se aprimora em suas representações, ele se solta mais como professor. O discurso inicial de suas aulas, sobre sair da zona de conforto e viver perigosamente, que antes não se encaixava com sua personalidade de professor reservado, começam a fazer sentido nos personagens que ele vai criando. A potência da interpretação (de Gary e de Powell) ocorre com a chegada de Madison Masters (Adria Arjona), que marca um encontro com uma versão do matador chamada Ron, pensada, claro, para atender às fantasias de cinema da suspeita: um homem sexy, que exala virilidade, que faz o tipo criminoso honesto, um cafajeste boa pinta. Se a missão era desestabilizar a suspeita, o objetivo se inverte. Gary se torna Ron em tempo integral, e passa a se envolver com Madison perigosamente, seguindo à risca as recomendações da sala de aula.

Madison surge se definindo como “esposa devota”, encomendando o assassinato do marido. Ela desestabiliza porque não se constrange e não teme o matador: pede um pedaço de sua torta, tem fome por seguir a dieta que o marido a obrigou. Uma mulher que carrega amarras em todos os lados e que vê na morte de seu predador a única saída para sua libertação. Arjona se transforma de esposa cativa para uma mulher leve e alegre, que escolhe suas próprias roupas e deixa os cabelos naturais, e que parece encontrar o seu verdadeiro “Eu” ao lado do suposto assassino.

Nosso “Eu” seria uma ilusão ou uma construção? O que Richard Linklater nos mostra, com a maestria que só suas mãos carregam para imprimir bom humor, leveza e tesão através da inteligência de tudo que ele constroi e gosta de construir, é que o Eu permanente é uma ilusão. Madison se apaixona por Ron, não por Gary. Mas Gary está se tornando Ron de alguma forma, já que ele é quem está possibilitando a Gary vivenciar a paixão, o sexo e o amor novamente. É delicioso assistir o casal nas telas. Além do magnetismo entre eles, a própria presença dessas duas figuras belíssimas flertando já é mais erótico que as (poucas) cenas de sexo em si. O assassino de aluguel que nunca matou ninguém e a esposa devota que deseja matar o marido se tornam um casal muito adorável.

Se o matador de aluguel Ron seria, na vida real, uma espécie de vilão, ali, na realidade de Assassino por Acaso, Gary também o é do ponto de vista dos tribunais. A cada pessoa flagrada por ele que vai à julgamento, tenta-se vilanizar sua figura, como um “aproveitador dos fracos”, desonesto, que faz armação para o flagrante. Aquela é a persona de Gary construída pelos advogados de defesa dos flagrados. Seria ela também real?

A brincadeira de Linklater sobre a (in)constância da personalidade cruza com a ideia da fantasia e do risco como motivo de atração entre pessoas. A fantasia amorosa e sexual é o impulsionador do relacionamento de Madison e Ron/Gary, e o diretor ainda se diverte e nos diverte inserindo fantasias dentro daquilo que já é fantasioso, de certo modo. O fetiche, entretanto, se torna genuíno, na medida em que o casal cria uma realidade própria, com regras próprias de relacionamento, de contrato assinado, se tornando uma rotina feliz e estabelecida fora dos padrões sociais, o impulso dando lugar ao surgimento do amor, tornando a simulação cada vez mais difícil.

O auge de toda performance é fabulosamente inserido em uma cena em que muitas das máscaras já caíram, mas a simulação é necessária para que ambos se safem. É soberbo o controle cênico de Linklater ali e a capacidade que ele tem de extrair um trabalho de altíssimo nível de seus atores. Ele nos coloca como numa metalinguagem da interpretação, onde as personalidades simuladas se encontram para mais uma nova farsa.

Se juntando à Rivais e Love Lies Bleeding na leva de (excelentes) filmes sexys de 2024, Assassino por Acaso preenche salas de cinema com muitas risadas, suspiros e respirações presas. Linklater costura e flui seu filme com destreza, rimando de forma divertida os ensinamentos do professor solitário com as personas que ele cria como hitman, se tornando, ele mesmo, seu principal aluno, para assumir a identidade que melhor lhe coube naquilo que ele passou a desejar como vida. Afinal, como ele mesmo ensina, a realidade não é absoluta e nem imutável, e sim, criada pela integração de pontos de vistas diversos de um mesmo indivíduo.

Nota:

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