Mediha | 2024
Há 10 anos, a região de Sinjar, no Iraque, sofria ataques sistemáticos do Estado Islâmico (ISIS ou daesh), especificamente direcionados às pessoas da etnia Yazidi. Por motivos religiosos e com o intuito de eliminar toda influência não-muçulmana do Iraque, em campanhas de “conversão”, a ISIS assassinou cerca de 5.000 pessoas, sequestrou e escravizou aproximadamente 7.000 mulheres, fazendo com que estimadas 500.000 tornassem-se refugiadas, o que a ONU reconheceu como genocídio em 2023.
A estratégia genocida se repete em muitos lugares e os horrores são inimagináveis, indescritíveis. Famílias são separadas, crianças são vendidas, meninas são feitas escravas sexuais e comercializadas como tal, pessoas são expulsas de suas terras e lhes é tirado tudo que conhecem. Em semelhante caso, ainda não declarado como genocídio, mas caminhando para tal, ocorreu por parte do governo otomano contra os armênios, entre 1915 e 1918, onde estima-se que quase 2 milhões de pessoas foram mortas. Em 2021, Joe Biden usou do termo “genocídio” para se referir a tais fatos, fazendo os EUA se unirem aos mais de 30 países que assim o reconhecem. O massacre armênio foi documentado pelo belíssimo filme O Despertar de Aurora, dirigido por Inna Sahakyan, que fez parte do festival É Tudo Verdade 2023, e onde acompanhamos a história de Aurora Mardiganian, uma sobrevivente.
Em Mediha, documentário dirigido por Hasan Oswald e coproduzido por Emma Thompson, também somos levados a conhecer uma face do genocídio Yazidi através da história de uma pessoa, a menina que dá nome ao filme. Mediha é uma adolescente que vive num campo de refugiados com seus irmãos, Ghazwan e Adnan, e com sua câmera ela registra os acontecimentos de seu dia-a-dia como num diário. Quando os massacres se iniciaram, ela e seus irmãos foram separados dos pais e do irmão mais novo, de quem nunca mais souberam o paradeiro ou ouviram falar. Mediha foi, aos 09 anos, vendida como escrava sexual, e somente anos depois foi resgatada e restaurada ao que restou de sua família. Acompanhamos sua tentativa de se recuperar do choque e do trauma de tudo que experienciou e sofreu. A câmera é seu pedido de socorro ao mundo.
Mediha, construído a partir dos registros da adolescente, é extremamente pessoal. O diretor faz poucas intervenções nos arquivos, e permite que o documentário seja conduzido em primeira pessoa em considerável parte. Já a conhecemos adolescente, e vamos compreendendo gradativamente os sofrimentos e atrocidades que a precedem, através de suas autoentrevistas. Ela faz uso da câmera para contar sua história e extrair imagens de seu cotidiano, como as que faz de insetos sobre as plantas, ao escovar os dentes num reservatório coletivo de água, acompanhar os irmãos em um banho de lago (ao que ela, por ser mulher, não é permitida) e fazer brincadeiras com eles, nos recordando que aquelas são, apesar de todo o horror vivenciado, apenas três crianças que, de modo tão injusto e assustador, precisam lidar com um fardo muito além de suas idades e vivem constantemente com medo. Ainda assim, carregam consigo alguma inocência remanescente, esperançosa, que os permite lidar com tudo aquilo.
Em paralelo, Hasan Oswald nos apresenta aqueles que ajudaram Mediha a reencontrar sua família. Pessoas arriscam suas vidas para resgatar outras desaparecidas e sequestradas, e esse foi exatamente o caso. Contatos infiltrados abrem caminhos para que esses salvadores façam seus trabalhos, e acompanhamos muitas câmeras escondidas nesse perigoso percurso de busca. Dentre as mais de 3000 pessoas desaparecidas, a tarefa deles é árdua, e em Mediha, é concentrada na busca de sua mãe e irmão mais novo. O desafio maior é encontrar a mãe, já que as mulheres sequestradas, quando findam por ter filhos de seus estupradores, acabam por se submeter ao ISIS para não serem separadas dos filhos, não aceitos pela sociedade.
As imagens controladas pela garota soam urgentes, como um clamo desesperado. Mediha quer e precisa se comunicar, quer mostrar tudo ao seu redor. Seus traumas psicológicos se tornam problemas físicos: nó na garganta, insônia, intolerância a sons, pensamentos suicidas. Ela busca auxílio psicológico, o que se percebe não ser comum naquele lugar, e por essa razão, vê-se que tomar a iniciativa de solicitar ajuda é outro obstáculo que ela precisa superar.
A violência daquele contexto é algo que apenas imaginamos, seja pelo depoimento da própria protagonista, seja pelas pessoas ao seu redor. As consequências do horror, porém, são muito palpáveis. Hasan Oswald, trabalhando com parcimônia, guarda os momentos mais delicados e dramáticos para a finalização da obra, intensificando as dores de Mediha pelos registros feitos por ela mesma. Além de lidar com suas próprias (e gravíssimas) questões, seu amadurecimento também é forçado pelo fato de ser, ali, uma espécie de mãe de seus irmãos, de conciliadora, de responsável. O reencontro da família com o irmão mais novo, que descobrimos havia sido adotado por um casal turco que concordou em devolvê-lo, vem como uma calmaria antes da tempestade. Tudo é televisionado, Mediha fala em rede nacional, a emoção é forte. A realidade de adaptação em quatro paredes, porém, é cruel. A garota filma a primeira noite de seu irmão com a família restaurada, e o que vemos é angustiante. O menino tinha idade tenra quando adotado, e após anos, fazia parte de um lar. Não surpreende que ele chame por sua mãe adotiva aos prantos, assustado, em desespero, e ali, a irmã se torna a mãe pela impaciência dos adultos ao redor.
A enorme ferida que se abriu em Mediha e sua família, obviamente, jamais cicatrizará. Os danos físicos e psicológicos são latentes, irrecuperáveis, dolorosos a ponto de se questionar o sentido de viver. Há um abismo muito profundo entre eles e nós, meros espectadores em cinemas e sofás. Hasan Oswald consegue ser pessoal e investigativo, direto, ainda que detentor de um material indireto das atrocidades. Há, ali, pela produção em si, uma ocidentalização de alguns espaços, seja pela camiseta estadunidense que a menina usa, seja pelos lugares de ajuda humanitária, mas o diretor não permite que isso domine seu longa. Mediha é o relato de um quase impossível exercício de sobrevivência após a consequência mais terrível do extremismo religioso e do discurso de ódio que o acompanha.