Zinzindurrunkarratz | 2023

Zinzindurrunkarratz | 2023

Uma câmera para filmar coisas silenciosas e recordar gestos perdidos. Uma câmera muda, sem capacidade de gravar sons, defeito que adquiriu pelo tempo. Essa é a ferramenta de Oskar Alegria em Zinzindurrunkarratz, uma Super 8 de mais de 40 anos, que pertencia a seu falecido pai. Um projeto que se tornou outro: o diretor esperava fazer uso do instrumento para registrar os caminhos e estradas da vida simples e rotineira no vilarejo de sua infância. Trata-se de um filme sobre jornadas imperfeitas, e da inesperada ausência de som das gravações, torna-se um projeto que se propõe a nos mostrar aquelas imagens mudas, do passado e do presente, do pai e do filho, e recriar sons específicos introduzidos de modo pontual,  homenageando aquele modo de vida singelo, gestual, manual, através da realização de um cinema que experimenta sua própria linguagem e gosta muito de contemplá-la.

O interesse de Oskar Alegria pelas imagens feitas pela Super 8 é carregado de uma nostalgia familiar que nos é facilmente transmitida. Há conforto e beleza singela no que visualizamos daquele mundo regular e que parece tão intangível. Vemos a alimentação e o pastoreio de ovelhas, e nos percebemos tocados quando uma delas, com dificuldades de locomoção, fica para trás. A ordenha da vaca leiteira, o caminhar taciturno de uma pessoa, o ato de cortar uma noz e um pão são alguns dos gestos perdidos que o diretor recupera, movimentos  manuais que moldaram a vida daquelas pessoas. 

O som que se perdeu no passado recebe uma nova captação, e o diretor enumera os sons que recria, recompondo as imagens com suas novas vozes. O próprio título, Zinzindurrunkarratz, é resultado da junção de lugares e sons que o diretor admira. Zin Zin seria o nome de um vale, onde há um buraco que ecoava o sonido Durrum Durrum.  A cada composição de imagens mudas, escolhe-se uma que seja especialmente presenteada pela nova sonoridade que nomeia a divisão do longa em capítulos. O que resulta disso é nostálgico e acolhedor, como se o barulho de uma faca cortando um pão fosse quase que um lugar seguro, tanto para o diretor como para nós.

As imagens desprovidas de som são igualmente preciosas, e até, por vezes, mais reconfortantes, já que observá-las sem o intermédio sonoro paralisa e chama a atenção. Um grupo de mulheres dançando e cantando sem que haja música audível que as embale realça a imaginação, nos faz observar com maior cuidado seus movimentos. Essa ausência, na realidade, eleva o status daquelas imagens ao que há de mais próximo da memória, e aqui, de uma memória afetiva muito intensa. Da mesma forma que o filme nos recorda que não escolhemos aquilo que lembramos, em Zinzindurrunkarratz há um certo descontrole sobre o que a Super 8 poderia revelar.

Quem ocupa grande parte dessas imagens-memória é o elegante burrinho Paolo, que exibe seus passos mudos, seus olhares profundos, sua postura altiva para a câmera. “Paolo é todo gestos”, narra o letreiro da legenda, que também não tem voz. Acompanhamos o trabalho de Paolo em prol dos humanos que ele serve, e é impossível não traçar paralelos com A Grande Testemunha, de Robert Bresson e Eo, de Jerzy Skolimowski, como se uma trilogia se formasse sem qualquer planejamento. Sorte a de Paolo, que aqui parece mais feliz e amado que seus antecessores, sendo merecedor de pausas exclusivamente dedicadas à sua contemplação.

Essa proposta de fazer da Super 8 memória e recordações, de se poetizar as imagens mudas e compor com elas uma jornada afetiva, perde-se um tanto quando começa a se tornar repetitiva e insistente, não sendo poucos os momentos em que parece que o filme encontrará seu fim, e de repente recomeça com a mesma ideia. Depois de organizar suas memórias, Oskar Alegria apenas seleciona em tela as imagens que o cativam mais para impor um conteúdo já conhecido na narração muda. Nesses momentos, o afeto foge um pouco de nós, e o som, de fato, começa a fazer falta ao filme.

Entretanto, é ótimo que os documentários encontrem outra rota para além das narrativas convencionais, que muitas vezes dependem de um certo sensacionalismo que as sustente, e que tentam transmitir uma ideia improcedente de imparcialidade que meramente reproduz informações de modo jornalístico. No ano de 2024, especialmente, filmes como o próprio Zinzindurrunkarratz, e Dahomey, de Mati Diop, conseguiram alcançar esse feito, de encontrar nas múltiplas possibilidades da linguagem cinematográfica uma forma inovadora, cada qual a seu modo, de contar suas histórias.

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